quinta-feira, 23 de junho de 2016

CUPIDO

se entregou desprotegida e foi alvo da flecha sem camisinha daquele cupido estúpido que lhe acertou em cheio. agora grávida de ilusão, acorda aturdida tentando recolher meias, sutiã, coração e calcinha, e mais um monte de lembranças espalhadas pelo chão, enquanto aguarda nove luas, nove baforadas de beise, que é o tempo que dura esse mundo etéreo, até a próxima flertada. 

virginia finzetto

quarta-feira, 22 de junho de 2016

TRAVESSIA

difíceis são os dias ensolarados se dentro de mim só chove. eu agora combino com o triste cinzento que cobre a janela e meus olhos, e o peito apertado por essa coisa que tento definir. por que exclamamos ou reclamamos se nada poderá mudar qualquer travessia? serão tão necessárias as anotações do barqueiro em sua fase malabarista tentando equilibrar sentimentos em poesia enquanto palavras alheias a tudo apenas aguardam ocupar um lugar? eu sei que hoje é só mais um dia que me ocuparei de rotinas requentadas e quimeras acalentadas. não é minha imagem inerte no lago que me fascina, mas a voz do retorno do eco que foi lá bater na sua montanha.

virginia finzetto

terça-feira, 21 de junho de 2016

BODAS DE PRATA

Hoje, Nel, se você aqui estivesse, poderíamos nos lembrar de quando decidimos oficializar nossa união. Não era necessário, a gente já tinha resolvido ficar juntos, o Arthur estava a caminho e a gente se amava. Aí você me fez sair da Lapa para irmos assinar nosso contrato no civil lá no cartório de Santo Amaro, porque era mais barato. Eu fui trabalhar de manhã e disse bem alto, na redação: pessoal, eu vou "ali", casar, e já volto! Eu nunca perdi meu bom humor. E assim durou nossa união, que hoje estaria completando bodas de prata, mesmo que a gente não tivesse se separado pelo motivo pelo qual você me deixou. Foi a única vez que me casei no papel, e não me arrependo de nada. Nel, era só para lembrar que eu nunca me esqueci de você. 

virginia finzetto

domingo, 19 de junho de 2016

CORREIO

entreguei-me sem confirmar o cep e fui parar em braços certos, fortes, cheios de pelos e poros vertendo suor, que me agarraram pelos quadris e desfizeram minha embalagem assim como uma criança que abre um presente no dia de aniversário. depois me tascou na boca uma chupada doce feito sorvete que derrete nas bordas até pingar no chão. carimbou minha face de beijos mornos e selou com ar quente do seu ritmo a minha respiração. lentamente me empurrou para o início da cama e me amou sem fim. até agora meu cérebro não tem ideia do paradeiro deste coração que já não é mais meu. 

virginia finzetto

sábado, 11 de junho de 2016

PARADOXO

dê-se por satisfeito
se te enterrarem uma flecha no peito
que penetra fundo é dói
não por acaso em tudo há dois gumes
enquanto um cura, o outro destrói
e para quem não aguenta o intento
vem o suicídio, súbito ou lento
a perseguir a hipotética paz dos cemitérios
nunca se provou, nem mesmo a ciência
que no profundo sono da morte
cada ser [ateu, crente ou cético] leva escondido
um quê de profético e originário
que une a humanidade em um estúpido
e último desejo imaginário:
querer perpetuar a mesma incerteza
de sentir em tudo esses dois lados que rejeita,
mas pelos quais se sofre uma vida inteira...
e parte-se com a lembrança de querer voltar a ver
o sol raiar [mesmo que quadrado]
no dia do juízo final [que não há no calendário]

virginia finzetto