domingo, 21 de outubro de 2018

O MEDO DA CONFISSÃO

Adeleusa em seu leito de morte, rodeada pelos oito filhos. Adeliane, a mais velha, lésbica, escondia da família seu relacionamento de vinte anos, nutrindo sua felicidade em segredo enquanto segurava a mão e olhava com ternura o rosto sofrido da moribunda. Persiclon, o caçula, a fitava em lágrimas, pedindo perdão por ter feito parte de uma milícia de extermínio a quilombolas e homossexuais. Ele, filho de negro, acreditou que dessa maneira expurgaria todo o seu ódio que o fizeram acreditar ser contra o PT. Todos chorando quando veio a revelação: "O pai de vocês era gay!". Fechou os olhos e, desta vez, não por vontade própria, renunciada durante quarenta anos, abandonou a todos à própria sorte.

virginia finzetto

terça-feira, 16 de outubro de 2018

O CÉU É O MAPA


o céu é o mapa, espelho da alma. não sei medir a dimensão de onde começa um e acaba o outro. talvez seja mais certo aceitar que o céu determina tudo se for ele mesmo sinônimo da alma. alheio ao desenho das verdades, o que insiste é um sentimento, ele que se debate em volteios procurando ditar o que não lhe cabe. não lhe cabe cabresto, não lhe cabe repressão, não lhe cabe ser mais machucado para diluir qualquer dor. não mudará um átomo na evolução dos astros. cabe-lhe vestir o abrigo do tempo invisível para atravessar as nebulosas desse firmamento. 


virginia finzetto

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

MITO

de mito em mito
um dia ele mata
o mote, o mato, a meta,
os outros e a si mesmo

virginia finzetto

precisamos falar sobre madame Deneuve


Por Virginia Finzetto

Em 1995 estreava na telona o filme Disclosure, do diretor norte-americano Barry Levinson, baseado no livro de mesmo título do escritor Michael Crichton. Embora classificado como suspense, muitos se enganaram com o sex appeal do casal protagonista nas imagens de divulgação da estreia e no apelo da tradução do título do filme no Brasil.
     Mas as cenas picantes – poucas – são meras coadjuvantes, nesse caso. Depois de tanto tempo não é mais spoiler lembrar que o tema central da história não fala de romance, cantada ou sedução. Trata-se de um caso de assédio sexual em uma hipotética empresa de informática na costa leste dos EUA.
     Para deixar claro que assédio nada tem a ver com sexo ou ser uma prática exclusiva dos homens, a escolha da figura feminina para representar esse papel foi bem inteligente. Jovem, bela e sexy mulher, a executiva Meredith Johnson (Demi Moore) usa de seu poder para forçar Tom Sanders (Michael Douglas), com quem ela já havia se envolvido no passado, a manter relações sexuais com ela.  Disputando o mesmo cargo pelo qual Johnson acabou ocupando, Sanders – casado e pai de família – recusa-se a entrar no jogo de sua atual chefe. Para se vingar, ela ameaça destruir a carreira dele como diretor de produção na empresa.
     O episódio vai parar na presidência, que tenta manipular um acordo entre os envolvidos, para abafar o caso e não prejudicar as negociações comerciais de sua fusão em andamento. Mas Sanders, recusando-se a aceitar a injusta pecha de tarado, busca orientação para provar sua inocência. O caso se espalha internamente, extrapola os limites da empresa e vai parar na justiça.
     Da fantasia à realidade, da tela aos estúdios, eis que assistimos no final do ano passado à onda de denúncias envolvendo o diretor de cinema norte-americano Harvey Weinstein. Contra ele pesa um número considerável de acusações de assédio sexual e estupro por atrizes do porte de Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow, para citar apenas dois exemplos.
     Vir a público uma história de assédio sexual, guardada em segredo durante anos, encorajou a abertura da caixa de Pandora. E, como efeito dominó, outros famosos, denunciados por abuso de poder, desfilaram no rastro dos holofotes revelando um subterrâneo nada romântico nos bastidores de Hollywood.
     O que não se esperava nessa programação de baixa fidelidade e alta audiência seria a interferência de um elemento incompatível, uma provocação batendo de frente à movediça crise revelada pela mídia.
     Do outro lado do Atlântico, misturando os fatos como quem prepara nitroglicerina com polpa de celulose[1], o Jornal Le Monde publica uma carta-aberta, elaborada por cem ilustres mulheres francesas, em resposta ao espocar das denúncias feitas pelas, por elas chamadas, “feministas norte-americanas”.
     Entre as signatárias do manifesto estão celebridades – atrizes, escritoras, pesquisadoras e jornalistas – como a atriz Catherine Deneuve – reivindicando o direito de “‘defender’ a ‘liberdade’ dos homens de ‘importunar’ e de ‘se opor’ à ‘onda de denúncias’ que surgiu após o escândalo Weinstein” e alegando que “o estupro é um crime, mas cortejar de forma insistente ou desajeitada não é um delito, assim como o galanteio não é uma agressão machista”.
     E assim, misturando alhos com bugalhos, após a explosão dessa carta-bomba, instaura-se uma confusão na mídia e nas redes sociais. Grupos se digladiando em discussões sem pé nem cabeça, tomando partido de um ou de outro lado... de dois assuntos completamente distintos colocados na mesma balança de julgamento.
     Será necessário desenhar que assédio, independentemente do gênero humano de quem o pratica, não diz respeito a sexo, cortejo, cantada, mas sim a poder?
     Voltemos a cena do filme Disclosure, na qual Catherine Alvarez (Roma Maffia), advogada de Sanders, interpela sua oponente após ouvirem a fita gravada com as provas da inocência de seu cliente:
– Srta Johnson, pode definir o que é sexo consensual?
– Sexo consensual é quando as duas partes concordam em participar.
– Quantas vezes ouviu o Sr Sanders dizer não, Srta Johnson?
– Não sei, eu estava mais preocupada em resolver o serviço.
– 31 vezes. Não quer dizer não. Não é o que as mulheres dizem? Os homens merecem menos? O fato é que você controlou o encontro, marcou a hora, trancou a porta, pediu o serviço e aí ficou furiosa quando ele não a atendeu. Decidiu se vingar. A única coisa que prova é que uma mulher no poder pode ser tão abusada quanto um homem.

     Uma coisa é cortejo, outra totalmente diferente é assédio. São distintos. Não se comparam e de maneira alguma são excludentes. Pode-se ser a favor do cortejo e contra o assédio, mas não se deveria questionar o justo rechaço ao assédio com argumentos que defenderiam apenas o cortejo.
     Ou poderíamos considerar falta de tolerância da parte das várias atrizes que tiveram de arrastar móveis para a porta de um quarto de hotel na tentativa de impedir a insistência alfa dos galanteios do senhor Weinstein?
     Em nome desse discernimento é que precisamos falar sobre Deneuve.
   Assédio é crime. Crianças, jovens e adultos, independentemente do gênero, qualquer pessoa pode sofrer esse tipo de abuso de poder. Fazer uma denúncia pública, nesse caso, exige que a vítima reúna muita coragem para superar o trauma e enfrentar todo o tipo de constrangimento quando os fatos se tornarem públicos. Além disso, deve reunir provas suficientes para conseguir que o criminoso seja levado à justiça.
    Uma tarefa nada fácil, pois o autor do abuso tem poder suficiente para ameaçar e obrigar sua vítima ao silêncio e fazê-la desistir, já que ninguém acreditaria em sua história.
     Portanto, não se pode comparar assédio com casos de paqueras insistentes, em que parte-se do princípio que até estas devem ter um limite. Em nome do apelo a "uma liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual" para os homens, teria sido justo incluir o apoio à liberdade de qualquer pessoa recusar um envolvimento.
     Madame Deneuve, com o devido respeito pela sua brilhante carreira de atriz, mas, mesmo depois de todo esclarecimento sobre pontos que obviamente não haviam ficado explícitos, como seu pedido de desculpas às vítimas de assédio e de estupro, se a sua intenção ao assinar o manifesto fosse dourar a flecha do cupido, creio que errou feio o alvo.
     À luz desse “eclipse oculto”, só invocando Caetano Veloso: “como se o coração tivesse antes que optar entre o inseto e o inseticida”.
                                        



1 – A nitroglicerina, substância líquida instável, em pequenas proporções, é um vasodilatador que pode salvar vidas, mas, quando em quantidade maior misturada com polpa de celulose, resulta na dinamite. Em condições garantidas, cada um desses elementos separados não oferece perigo de explosão.