sábado, 21 de dezembro de 2019

SORRATEIRA

a personagem esgueira-se pelas entrelinhas, saltando de página em página, até subir pelos prefácios e cochichar na orelha do livro que será ali do alto. então pula de cabeça sobre as letras inertes do título. luta e dá a palavra que mudará seu destino.

virginia finzetto

sábado, 30 de novembro de 2019

CRÔNICA

VOCÊ, RECLUSO EM CASA, QUER VER COMO É A VIDA LÁ FORA?



precisava comprar zaatar. o único lugar onde vende o que gostamos é o empório Syrio, na Abdo Schahin... isso, a rua paralela à 25 de março. lá vou eu. tomo coragem, sem antes traçar um plano para percorrer o trajeto com objetividade, na intenção de perder o menor tempo possível. sábado, você pensa: "é moleza". não, não é. começando pelo metrô, baldeação e a linha azul sempre lotada. desço na estação São Bento e evito a Ladeira Porto Geral e qualquer atraso. ando então até a saída do Largo, que é mais perto do meu destino. um violeiro na porta toca dois acordes, para e diz ao microfone: "deu branco". sigo até a pequena rua, já interditada aos carros, que dá quase em frente a outra que me levará ao endereço certo. vejo pelo menos dois mendigos tão sujos dormindo no chão e penso que talvez eles nem se lembrem mais a qual raça pertencem. desvio dos camelôs haitianos, de qualquer distração e de todo tipo de freguês no empurra-empurra. ouço a mulher gritar bem alto: "isso não vai ficar assim, seu merda". a verdade é que está todo mundo com pressa e ninguém dá bola aos detalhes da vida. penso que não houve nenhuma vez em que fui ao centro sem sentir a ditadura que exalava naquele ano de 1969, lembranças da minha adolescência por aquela região. penso que a verdade e a democracia são como o relâmpago: "quem viu, viu". agarro firme na bolsa e ando apressada. entro no empório, compro o que preciso e mais algumas coisas e saio logo, antes de sucumbir ao apelos inevitáveis de outros consumos desnecessários. bom, tudo que desce, sobe. e essa parte é a mais difícil, até chegar de novo na mesma entrada da estação. entro numa fila de acesso ao embarque. ouço no alto-falante "cuidado com seus pertences. mantenham bolsas e mochilas firmes ao corpo". não está acontecendo nenhum roubo, até ali não vi nada, mas lembrei do ditado "quem avisa amigo é", de quando estava na cidade do México, no Zocalo, nas rádios que alertavam sobre como agir em caso de terremoto, e não vi nada disso acontecer. minha mente volta para aquele lugar abafado da estação e tento controlar minha síndrome do pânico, já que era inútil mudar de ideia. então sigo com a manada até o vagão e penso: "em que ponto chegamos que não é mais possível voltar?" 


virginia maria finzetto

terça-feira, 19 de novembro de 2019

VERDEJAR

quando nasci, eu só possuía recordações do inferno. cresci certa de que tudo havia sido feito de maneira que eu reconhecesse ali a chance de construir um novo céu. os fatos foram se entrelaçando com o tempo para formar outra tela, agora com minhas vigorosas pinceladas impressas com as cores de outro mundo. sob o efeito da tortura das memórias persistentes, das surras e das suras, um dia resolvi que no lugar das flores secas do vaso antigo da sala deveria vingar o verde de uma planta jiboia, para que suas folhas mostrassem o ciclo do apogeu e do declínio, a impermanência da vida e também da morte. e em todos os demais dias eu venho tentando lembrar de regá-la. 

virginia maria finzetto

sábado, 16 de novembro de 2019

A PERNA DO P

STOp!
pROCRASTINE...
o freio da letra que para
é o mesmo que adia.

virginia finzetto

INSIGNIFICANTE

toda vez que leio 'procrastinar', eu penso em ver seu significado no dicionário, mas acabo deixando pra lá.

virginia finzetto

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

LIBERDADE

quero exercer minha opinião como uma artista que saiu de cena, que tirou a fantasia, que varreu os confetes e que sente a dor de um beliscão e o hálito da saliva alheia sem etiquetar sensações com um preço. quero ser apenas alguém comum, que não coloca algema em ideias, por sentir que essas entram e logo voam, como seres livres que são, e não lhe pertencem. quero ser como elas, acolhidas e logo soltas em seguida, sem muita explicação. 

virginia finzetto

terça-feira, 5 de novembro de 2019

O AMOR É PRÁTICO

se houvesse a prática demorada da arte da conquista, haveria menos separações. mas as pessoas creem no tal amor à primeira vista e se separam a duras prestações. e nesse louco baú da felicidade, eu sei que já comprei e paguei muitos carnês. agora me basta um cara de pau duro. só. 

virginia finzetto

AMOR COM AMOR SE PAGA

Amor: a primeira, à vista;
as outras, diárias...


virginia finzetto

A GLOBO É A BOLA DE TODA VEZ

a Globo faz e desfaz, sempre foi assim. coloca o VT para lembrar que ela colocou o Collor e que ela mesma tirou o Collor. foi a Globo que colocou esse aí na posição de chefe de estado do que já foi a sexta potência econômica do mundo. então, nada mais justo que ela queira tirar esse paspalho quando claramente está ameaçada de extinção. a pergunta que não quer calar não é quem estava na casa 58, mas por que a informação de quem estava na casa 58 só veio agora a público, quando durante as investigações sobre a morte da Marielle já se tinha chegado aos autores do crime, já se tinha ouvido da boca do delegado que apurava os fatos de que havia "gente do poder envolvida", enquanto ela apoiava esse candidato que agora, numa clara ameaça pública histérica, aos berros e com palavras de baixo calão dignas de nenhum chefe de estado, a acusa e a intimida de cassar sua concessão. a pergunta deveria ser: quem está por trás da Globo que teria permitido que esse miliciano chegasse ao poder por meio de uma campanha sórdida pelo golpe de estado sustentado pelas criminosas ações da lava jato, pelo impeachment de uma presidente que não cometeu crime algum, pela difamação do PT, pela destruição da indústria da construção civil e das estatais e pela blindagem do maior partido canalha desse golpe, o PSDB, promotor dessa desgraça que nos abateu? a pergunta é: quem está também por trás da FIESP, que agora se faz de surda e não ouve os apelos no comercial de TV do empresário fabricante de refrigerante terminando com o boneco que diz "quem é brasileiro não teme estrangeiro"? a pergunta é: por que ainda estamos aqui sentados enquanto a América Latina já está nas ruas lutando pela derrocada desse modelo falido de neo-colônias dos EUA? 

 virginia fInzetto

NEOLIBERALISMO

desmonte é a pior forma de destruição. 
é o arrancar da casca que mal se forma 
em uma ferida sem cicatrização.

virginia finzetto

ASSIM É...

a impressão que tenho sobre a falta de mobilização consistente contra esse governo é a distração que leva a maioria não aguentar pensar sequer sobre o pensável, então prefere crer que o impensável jamais acontecerá, como se fosse possível evitá-lo da mesma maneira que se tenta adiar a morte. com isso, ficamos submetidos ao medo travestido de credulidade em uma oca esperança falaciosa. refugiar-se na ignorância é não abastecer o camelo com água bastante na travessia desse conhecido deserto. os milagres existem, mas é preciso ter visão para enxergá-los. até nisso é necessário uma grande dose de coragem e muita atenção. acordar, viver de acordo com o coração, esse órgão que sabe de tudo, antes mesmo dos olhos.

virginia finzetto

TARDE DEMAIS!

Título do meu livro procrastinado: 
"Perdemos Vladivostok em 2013". 
Agora Inês é morta 
e a Terra, plana.

virginia finzetto

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

CONSULTA

quando tento entender minhas doenças autoimunes, penso nelas como seres. vejo direitinho as carinhas de criança peralta. coloquei as duas sentadinhas na minha frente para bater um papo, assim, sem neura. não quis passar pito, dar bronca, apenas as chamei para tentarmos, juntas, investigar o início de tudo. senti, pela expressão de interrogação, que elas pouco sabem sobre o assunto. são apenas mercurianas entregando o recado. agitadas, querem logo escapulir para brincar. não fixam muita atenção em mim. seus olhinhos ligeiros sondam o entorno como que procurando os lugares para novos estragos. eu daqui, inclino a cabeça, sorrio dando tchauzinho. deixa elas... 

virginia finzetto

terça-feira, 15 de outubro de 2019

CATAPULTA

- vai se catá!, debochava a pulta, 
até ser defenestrada!

virginia finzetto

OCO

a tendência de ocupar os espaços vazios nos leva a preencher imediatamente o que descartamos como sem importância, até que não haja vazios. no oco, no vão, no vácuo reside um mínimo de chance de se cultivar a dúvida, de se espantar com o maravilhoso que é a presença ausente de qualquer importância e da insustentável falta dela.

virginia finzetto

sábado, 12 de outubro de 2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

terça-feira, 1 de outubro de 2019

A INEXISTÊNCIA DE EVA

Meu filho sempre foi curioso, inteligente e esperto, e queria saber o porquê de tudo. Mesmo assim, os professores nos chamaram um dia e sugeriram que ele passasse por uma avaliação de um terapeuta, para identificar a causa de sua dispersão. Segundo o diagnóstico, os exames clínicos apontaram um déficit de atenção. Havia uma defasagem entre o que ele ouvia e o que o cérebro dele processava. Provavelmente a causa de sua desobediência às ordens dadas e à tradicional disciplina exigida para adquirir o aprendizado regular. A partir daí, seguindo as orientações médicas, ele começou a frequentar sessões de ludo terapia e fonoaudiologia.
Certo dia, enquanto folheávamos algumas revistas disponíveis na recepção do consultório, ele se interessou pela capa de uma delas que trazia a imagem reconstruída em computador do crânio feminino encontrado pelos arqueólogos, com a chamada em destaque: “LUZIA”, A PRIMEIRA BRASILEIRA.
-- Olha, mamãe!
-- É, que legal... A Luzia, a primeira mulher! – exclamei.
-- Mas a primeira mulher não é a Eva?
A sala repleta de gente. Todos riram dessa tirada genial, que me encheu de orgulho do meu filho perspicaz. Então, expliquei a ele que aquele fóssil era o da primeira mulher encontrada no Brasil e que existiam muitos, até mais antigos, descobertos em outras partes do mundo.
Como fazê-lo distinguir que uma coisa eram os achados arqueológicos e outra era a abstração necessária para compreender a complexa e metafísica simbologia da existência da primeira mulher bíblica, se eu mesma tinha tantas dúvidas...
Quando se perde a capacidade de acreditar em algo que não deixa pistas materiais que satisfaçam aos cinco sentidos físicos, as pessoas ou duvidam dessa existência ou cultivam a fé, que é crer sem a necessidade de provas.
Muitos anos se passaram, mas meu filho continua o mesmo cético no que parecia ser apenas ingenuidade infantil: “se foi possível descobrir a Luzia, onde estariam os ossos da Eva?”.
Supondo que por um ângulo da ciência nós existimos a partir da evolução do macaco, quer crença maior do que um elo perdido que até agora ninguém encontrou? Ou é melhor acreditar que fomos criados a partir do pó das estrelas?
Seja o que for, há uma Eva em nossas vidas, encontrem ou não seus restos mortais.
Pode crer!
Virginia Finzetto 

(crônica para o blog da Scenarium Plural, janeiro de 2017)

domingo, 29 de setembro de 2019

O CÉU DA IMAGINAÇÃO

Quando se mudou para o apartamento do quinto andar do novo bairro, Ana teve que respirar fundo para não cair em prantos. Qualquer cena apaixonada, como a do casal se beijando na portaria do prédio, era motivo para alimentar sua tristeza. Esses detalhes mostravam a desolada realidade de sua atual condição, reprisavam lembranças do que imaginou serem os dias mais felizes ao lado do último marido, agora apenas o ex, que acabara de lhe pedir o divórcio.

A dor da separação ainda pulsava em sua jugular e tirava seu coração do ritmo. Estava difícil deixar para trás uma parte de si mesma. Agora estava só, cuidando da metade que restara de mais uma quimera. Ainda limpando as lágrimas dos olhos, recordou-se do episódio da loja.

Certo dia, comprando uma roupa nova para preencher o vazio da alma e da baixa autoestima, enquanto procurava qualquer coisa nas araras, deu de cara com uma imagem: "Nossa, que mulher mais parecida comigo...". Mas não havia mulher; era um espelho atrás das roupas penduradas. Quando percebeu o engano, ficou tão chocada e surpresa com sua reação diante da própria imagem, que permaneceu ali por uns instantes pensando quem seria essa que não se reconhecia mais.

Esse insight fora tema de várias sessões de análise, até chegar à conclusão de que se conhecia pouco, ou quase nada, e nem mesmo aceitava sua aparência real. Tudo em si havia sido uma farsa, alguém que sobrevivera das energias do chakra básico, regida por impulsos histéricos e pelo arder da própria vulva hipnotizada por uma sensualidade perversa.

Pagou caro para descobrir que o que havia perdido fora a paz interior que a tornara vulnerável a tantas relações tóxicas e doentias. Agora, em seu novo endereço, pretendia resgatar sua vida e seu equilíbrio emocional à custa de quase todo o salário gasto em horas semanais de terapia.

Na primeira noite, a costumeira insônia. No silêncio do quarto, Ana começou a divagar em lembranças até se sentir atraída pelos sons que vinham do teto. O ritmo lento dos movimentos do que evidenciava ser uma relação sexual ia adquirindo força naquele céu. Logo percebeu sua respiração suspensa e cada vez mais envolvida pela sinfonia dos pés da cama arranhando com vigor o assoalho do apartamento de cima. Quase ofegante, conseguia ouvia os gemidos aumentarem gradativamente, até explodirem em gritos de prazer.

Aquilo a excitara de tal maneira que não pôde evitar tocar sua vagina com desespero, pensando apenas em si. Mas logo os sons lascivos retornaram e dessa vez ela se entregou a ménage à trois à distância, ouvindo e sentindo na pele o tesão e a volúpia de carícias ofegantes lambuzadas com palavras obscenas.

Durante toda aquela primeira noite, Ana explorou partes do corpo há tempos ignoradas e se imaginou sendo tocada e desejada por aqueles seres incógnitos em cópula, enquanto atingia múltiplos orgasmos solitários em seu deleite com o próprio colchão. Exausta de prazer, acabou pegando no sono.

Acordou já no meio da tarde e se arrumou para sair. Precisava comer alguma coisa. Chamou o elevador, que estava parado no andar de cima, e, quando a porta dele se abriu, deu de cara com o casal, o mesmo que havia encontrado na portaria no dia anterior, de mãos dadas e trocando olhares maliciosos.

Dali em diante, naquele mesmo horário, a mesma cena se repetiria todos os dias. Assim que o elevador abria as portas, os três se cumprimentavam com sorrisos íntimos, mal disfarçando a cumplicidade pelas noitadas em claro.

Pelo tempo que durou a combustão dos recém-casados em lua de mel, Ana teve entretenimento farto.

Então, naquele dia em que as portas do elevador se abriram e não havia ninguém ali, ela descobriu que sua insônia também havia lhe abandonado. Como mágica, antes que se tornasse uma adicta daquela droga sexual inventada, voltou a ter desejos de experimentar um novo relacionamento, mais real do que a sua imaginação.

virginia finzetto
in revista literária Plural Erótica, agosto 2019.

domingo, 15 de setembro de 2019

terça-feira, 10 de setembro de 2019

FERMENTO

sem o tempo exato de o fermento agir, não há pão, eu ouvi hoje.. mas alguém sabe me dizer o que acontece quando uma massa fermentada é esquecida, deixada de lado por descaso ou por falta de habilidade em dar continuidade ao processo? eu penso que a resposta seja: pode jogar fora, pois ela não serve pra nada. situações da vida em que tempo, lugar e pessoas são mal avaliadas, dá perda total na certa. 

virginia finzetto

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

GENTE TEMPERO

eu gosto de certas pessoas como gosto de alguns temperos. não é que não as aprecio, só que para amá-las não pode ser muito, nem um certo tanto ou suficiente. tem que ser infinitesimalmente pouco, porque só assim aparece o realce que elas conferem aos sabores outros às quais se combinam. assim como coentro e cominho, tem gente que de intensa é um porre, mas sem elas eu sinto muito de uma sofrível presente ausência. 

virginia finzetto

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

69

clandestina
imigrante 
me prostituí
de Woodstock 
às ruas de LA 
mas não topei 
com nenhum richard
keith ou gere
me dizendo
o que servir

virginia finzetto

segunda-feira, 1 de julho de 2019

DESCOMUNA MUNDIAL

agora todos os animais
não se reproduzem porque
não exalam seus odores
não identificam nem sentem
certas frequências do som
da sintonia do amor

substituídas as câmaras de gás
inodoras do holocausto
suprimidos os bemóis
e retirados os sustenidos
humanos não se reconhecem mais
não se admiram nem se olham

sob os escombros do descartável
todos copulam como ordenhadeiras mecânicas
e ignoram seus bebês desprogramados
largados em depósitos
vigiados por babás eletrônicas
de última degeneração
nesse império da deformidade
não sentem perfumes nem sabores
não enxergam nem ouvem
não identificam o cheiro do enxofre
nem o podre da carne
exalados pelas chaminés de extermínio

esse imenso exército sem tato morre viciado
em inalar um tipo raro de tiol volátil
um desumano agente entorpecente da alma
que elimina sem qualquer reação
o limite acima da quantidade programada
pela descomuna mundial

apenas os rouxinóis resistem
fazendo seus ninhos no topo das montanhas
do lixo cibernético acumulado,
como minaretes a arranhar o céu
de toda a loucura,
e não se cansam de entoar seu chamado

à lembrança

quase perdida

do que um dia

já foi sagrado

virginia finzetto

[in revista literária Plural F451, edição de junho de 2019]

A SETE CHAVES

investigar sobre a suspeita

suspeitar do que odeias
odiar em qualquer desfeita
o joio que semeias

semear sobre o tempo
temporizar esses planos
planejar em cada evento
a ilusão dos enganos

enganar sobre a morte
morrer em cada lance
lançar da tua sorte
o último romance

romancear sobre os estímulos
estimular a tua firmeza
afirmar por entre túmulos
o mantra da pureza

apurar sobre a pauta
pautar mais uma escrita
escrever em tua minuta
o epitáfio dessa cripta

critografar sobre os amores
amar a tua lembrança
lembrar a esses atores
a quebra da vingança

vingar sobre a procura
procurar nessa espera
esperar de tanta jura
o amor de outra esfera




virginia finzetto

quarta-feira, 26 de junho de 2019

ESTAR NO MUNDO

corpo, esse ator cuja alma se identifica
com a dor, 
cujo espírito experimenta um átimo 
do cenário planejado há milênios.

virginia finzetto

segunda-feira, 24 de junho de 2019

ESTAR SEM SER

almejo tanto um mundo fraterno, que já visualizo parte do meu corpo na realidade paralela! se todos treinarem, eles somem!

virginia finzetto

CERTAS COISAS

não me entendam, não peço por isso. certas coisas vou falar no reservado, vou chamar você para o cantinho, vou limpar seus perdigotos do meu rosto com discrição, sentir seu cheiro de boca e guardar silêncio. certas coisas não têm dízima periódica, números depois de vírgula, claves que as antecedem, letras depois de ponto final. certas coisas são veladas ao mesmo tempo que descobertas. certas coisas são apenas pactos feitos de um impacto que emudece visionários. certas coisas nem são tão certas quando mesmo que abertas se fecham em dúvidas particulares. cantinhos guardam montanhas de certas coisas. 

virginia finzetto

sexta-feira, 31 de maio de 2019

POEMA DO EXÍLIO

dói infinitamente
ouvir de meu ego
que ele se sente machucado
e por isso quer melhorar o mundo
fazendo tudo do seu jeito

em seu sono profundo
não imagina que já esteve aqui
a bater prego
na tábua de outro crucificado

não nego, mas não o rejeito
sei que sequer ele é só amigo

de novo, quando eu partir
sem nenhum grande feito
que imagino poderia ter realizado
levarei a lembrança
de outro fim de umbigo


virginia finzetto

segunda-feira, 6 de maio de 2019

TROCADILHO

houve um tempo
em que caminhei
cega pela paixão

mas nunca estive 
tão wonder 
em toda minha  
brega vida

virginia finzetto

quarta-feira, 17 de abril de 2019

DIÁRIO DO MAGREBE

desde o dia em que descobrira que seus desejos eram atendidos, Ana passou a pensar menos em si. não havia premeditado mérito nessa atitude, não havia pressuposto ganho pessoal, não havia sequer um motivo nobre. apenas uma súbita visão acontecera certa manhã e soube que parte importante do mundo precisava estar resolvida para que ela voltasse a sorrir de verdade. tinha uma pitada egoica à solidariedade que brotara espontaneamente. entre feridos e moscas, milagres de cura realizavam-se diariamente. a 500 quilômetros de Rabat, a provisão de recursos não era suficiente para aplacar a epidemia por mais uma semana. a toda hora, lembrava-se de que estar viva dependia mais dessa força do que da vacina que se recusara a tomar. à noite, quando a temperatura caía muitos graus, o acampamento silenciava e ela, envolta em pesadas túnicas de lã, admirava as estrelas. seu camelo amarrado, sua alma voava.sem a luz, tudo se mostra outra coisa. a madrepérola verdadeira de abalone, que não reflete seu verniz iridescente à noite, guarda as proporções do que ela estava sentindo ao olhar aquele céu. era de dia que se podia pensar no mar de estrelas fixas a comandar os destinos, mesmo sendo ele apenas aparentemente inexistente. na primeira vez em que estivera no Saara, não havia deslocamentos de luzes na Via Láctea. a corrida espacial apenas começara e era praticamente impossível uma disputa de satélites orbitando a Terra. agora, ficava em dúvida sobre a realidade dos luminares, o sentido do que verdadeiramente brilhava e o engano das artificialidades a iludir os sentidos. viu a estrela Polar e pensou que a ninguém havia sido negada uma pista. algumas são percebidas de olhos fechados.
preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. teve a mesma sensação dos desequilíbrios que tivera na ocorrência de levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.agora todos esses registros pareciam fazer parte de outra Ana, de uma história inventada para mantê-lo vivo em sua memória.
 
de passagem por Iguelmimene, recordou-se de que o povoado tinha menos de 10 mil habitantes quando o conhecera. no final daquela década, um mundo inóspito revelou valores tão distintos dos seus, que nenhuma descrição de civilizações além do planeta poderia causar tanto impacto quanto o que ela havia experimentado ali. todos funcionando como um só organismo, cujas células não reivindicavam fama exclusiva para si. os berberes, que sempre se mantiveram em festas para preservar sua cultura frente à dominação dos fundamentalistas, mostravam os sinais da verdadeira resistência. naquela visita, ela e Juan, constantemente sob o olhar complacente dos que não compreendem quão fragmentado foi se tornando o Magrebe, destacavam-se como feridas expostas no deserto. talvez eles se preocupassem pela sobrevivência dos que adotaram a individualidade como forma de vida. 

assim que o jipe deixou para trás as muralhas escaldantes do ksar, Ana tirou da bolsa o mesmo porta-kohl que comprara em Tânger, há 30 anos, e lembrou da última vez em que Juan acariciara seus olhos. chorou... chorou muito sua nostalgia, mas distraiu-se com as tâmaras oferecidas pelo guia. a viagem de retorno seria longa e certos caminhos jamais deixariam de existir. 

às vésperas de seu retorno à Gibraltar, caiu um atípico e intenso temporal no lado marroquino do mediterrâneo. o fato soou como um aviso dos deuses à decisão de Ana em abandonar suas buscas por Juan. da janela do quarto da modesta pensão, ficou imaginando como seria se tivesse que passar pela experiência de viver prisioneira. não bastava ter que se conformar como hóspede de um corpo, uma reclusão forçada seria uma violência contra sua alma que tanto lutara para aprender a ser livre. a noite se aproximava e nenhuma notícia de que o clima adverso poderia se acalmar em breve. todos os ferries estavam suspensos. resignou-se em se espelhar no exemplo daquela água que escorria pela vidraça, moldando de várias formas sua existência entre o céu e a terra, aceitando ser o que era naquele momento. logo se distraiu pensando sobre as coisas fora de uma ordem lógica como era a Espanha marroquina e a Inglaterra andaluza. acendeu a luz do abajur e voltou a fazer suas anotações sobre a ponte traçada entre os dois destinos, sem adivinhar a surpresa que iria ter no jantar.


virginia finzetto

sexta-feira, 5 de abril de 2019

BREVE

diante do quadro irreversível, estaremos encerrando nossas atividades na Terra.

assinado:Deus

virginia finzetto

NAMASTRETA

o ego que habita em mim 
não se reconhece, 
na maioria das vezes, 
no ego que habita em você

virginia finzetto

quinta-feira, 4 de abril de 2019

DE ROTA

país de rota
pneu roto 
que roda
na estepe

virginia finzetto

A COR DA

a-cor-da realidade
é roxa beliscão

virginia finzetto

ALÉM DA LENDA

se você quer morrer para ficar na presença de Deus, saiba que vai ter que entrar numa fila imensa. lá na frente, ocupando o primeiro lugar, está um desconhecido que, dizem, é da época de Adão. ele avisou ao de trás que pediu que o de trás avisasse o de trás, e assim sucessivamente, para que avisassem os que chegavam. parece que houve muito ruído nessa comunicação entre as pessoas que ainda não estavam na presença de Deus e o último que acabava de chegar, ainda carregado de vícios terrenos, tentava furar uma brecha, um atalho na bicha, mas todos gritavam: "nós avisamos!". enquanto isso, corre a informação, entre um grupo de sábios, de que Deus mesmo não está nem aí.

virginia finzetto

POESIA

poesia
é um poema
com presença
de espírito


virginia finzetto

sexta-feira, 29 de março de 2019

TOLEDO

no banco da praça do alto da cidade, Ana apreciava toda a vista da parte oeste de Toledo. quase a se por, o sol ainda iluminava o chão e fazia surgir o furta-cor nas penas das pombas em movimentos ligeiros a disputar migalhas do pão de um sanduíche descartado. àquela hora, a nostalgia baixava pontualmente e vinha gazetear lembranças do museu de Santa Cruz, em que ambos se deram conta, como um casal apaixonado que sempre olha na mesma direção, existir nas imensas telas de El Greco o domínio singular de pinceladas de luz sobre suas esguias figuras melancólicas. quantos dias iguais a esse teriam se passado? certeza que antes da reconquista de Al Andaluz pelos Reis Católicos alguém estivera ali mesmo, séculos atrás, a desfrutar, ao contrário daquele sentimento, de uma alegria radiante. imaginou como poderia ter sido essa época se o mesmo artista retratasse o real e o sobrenatural, o que pertencia ao céu e o que era próprio da terra, sem a tristeza profana na face de seus personagens tão sagrados. menos santificadas, luzes e sombras, assim também eram as camadas de tinta que ela tentava jogar sobre o quadro de detalhes que velavam e revelavam facetas de Juan e o que permanecia como verdade em sua vida.

virginia finzetto

segunda-feira, 18 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

DESARME-SE

o bullying alimenta o sociopata

é a arma que mata o outro

e o tiro que sai pela culatra

virginia finzetto

sábado, 9 de março de 2019

sexta-feira, 8 de março de 2019

AS OITO MARIAS

Ela suportava uma vida no cabresto desde os 15 anos, quando se casou grávida dele, o capataz. Uma adolescência encarcerada e infeliz. Nunca tivera orgasmo. Nunca sentira nada próximo do que lia nas revistas ser um prazer.

Ele era rápido e violento. Toda vez que se aproximou dela evitou preliminares, carícias e beijos. Ele tinha nojo. Era uma rotina de coitos noturnos depois da ablução de suas partes íntimas, que ele a obrigava fazer.

Após cada estupro, ele se virava e roncava feito um porco, encharcado que vivia de cachaça barata. Não dava a mínima para a alma do que restava daquele corpo feminino em prantos largado ao seu lado.

Desses abusos nasceram ‘marias’  assim escritos em minúsculas e registrados tardiamente em cartório, para demonstrar seu menosprezo cada vez que nascia mais uma cria.
Ele queria um macho, e ela só fazia ‘marias’.

Quando Erasto foi encontrado morto na zona da periferia do pequeno município, a vida dela mudou. No dia seguinte ao enterro, partiram para viver longe dali, ela e uma fileira em escadinha das meninas que pariu.

...mariaEunice, mariaEster, mariaEugênia, mariaEfigênia, mariaElena, mariaElisa, mariaEulália e mariaEsperança...

Tal qual era feito com o gado da fazenda, a letra ‘E’ principiando o segundo nome carregava significados de ferro em brasa marcando como sua propriedade cada fêmea gerada por ‘mariazinha’ assim escrito em minúscula e no diminutivo, para demonstrar seu menosprezo pela mulher que não lhe dava um varão.

Do casamento até o dia de sua alforria, por arrastados sete anos, ‘mariazinha’ não conheceu seu ventre sem germinar. Vigilante aos abusos, que ele atentava até contra as filhas, seu corpo era templo de gestações e escudo matizado dos espancamentos que sofria.

‘mariazinha’ transformou todo aquele ódio que nutriu pelo falecido em forças para educar suas crianças, com garra e retidão de caráter. Jurou que daria a elas uma nova vida.

Desde pequenas, quando mariaEunice caia, mariaEster amparava; quando mariaEugênia adoecia, mariaEfigênia cuidava; quando mariaElena reclamava, mariaElisa ouvia; quando mariaEulália cantava, mariaEsperança reunia todas em roda para dançar.

Mas quando choravam, era o colo de ‘mariazinha’ que iam buscar.

Elas sempre se contaram sua própria história. Nunca se permitiram ao esquecimento, pois toda aquela herança genética amaldiçoada não seria transmitida igual doença a contaminar a descendência.

Todas as noites, a mesa quadrada na sala de jantar, com duas cadeiras em cada lado, recebe as oito ‘marias’, agora adultas e nutridas. Há risos, alegria, conversa compartilhada e, naqueles segundos de silêncio que parecem parar o tempo, seus olhares profundos se cruzam e elas experimentam a força de uma construída cumplicidade feminina.

Virginia Finzetto

                                                             •∆•

Conto publicado na revista literária Plural Coletivo 21, da Scenarium Plural, março 2019.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

FEMINICÍDIO

sou prostituta de desprogramas
frustro expectativas e furo bolhas de ilusão
de todos os contaminados em seus dê-ene-ás
com os subterrâneos vírus diabólicos de vingança


covardes raivosos e desgraçados
contra mulheres usam arma de fogo
para eliminar qualquer recusa
a desejos de castrados na base do falo


nessa carne podre congelada
nesse corpo de escamas e gosma
não faço boquete nem beijo boca
de quem não abriga mais o éter original


virginia finzetto

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

MORTE CRIMINOSA

eu me coloco atrás da cortina e espio aquela criança alegre brincando com a turma na rua de terra. de repente sua tia com lágrimas no olhos chega e lhe chama de lado. a menina se transfigura e começa a chorar desesperadamente. foi assim, que aos 9 anos ela teve o primeiro contato com o luto. a notícia do desaparecimento definitivo do primo da mesma idade que ela tanto amava. sua reação imediata se prolongou por muitos anos, pois os crimes, e não o acontecer natural da vida, são os que nos violentam moralmente, de tal maneira que passamos a odiar a morte. continuo atrás da cortina, calada, olhando a menina. 

virginia finzetto

A ENTREGA DA GATA

todos os dias
a Mel diz que me ama
e de como a vida
deve ser


eu não, mas ela
enxerga em sonho
os lírios do campo
que eu ignoro
de olhos abertos


viver é mais do que
ter casa, comida e cama


virginia finzetto

domingo, 20 de janeiro de 2019

BRINCADEIRA SIDERAL

a lua rouge se esconde do sol
atrás da barra da saia da terra
ela nua, ele ruge
ela, mãe, a protege


virginia finzetto


imagem: Shutterstock fonte: Último Segundo IG


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019