quarta-feira, 28 de junho de 2017

1987

o secreto mais repleto com as boas memórias eu imprimi em papel colorido e arabescos. mas o viço das cores iniciais, ao longo do tempo, começaram a mostrar os sinais de envelhecimento, por causa do uso constante e da imprudência no manuseio. nas bordas, as mini-dobras agora denunciam que foram lembranças intrusas que insistiram em desvelar, ali, o que seriam somente ilusões. visíveis, já, são os sinais do gasto. o medo e a desesperança são como pingos de azul de tornassol, que se espalharam revelando as partes codificadas do mapa do sonho. eu ainda me agarro fielmente às sobras da estamparia alegre que resistem. e, entre uma ilha e outra ainda não invadida pela terrível frieza desse mundo líquido, procuro um cantinho onde me abrigar. 

 virginia finzetto

quarta-feira, 7 de junho de 2017

HIPOTETICAMENTE

homem que é homem
é humorado histérico
é hospício histórico 
é holofote histriônico
   happy hour

homem que é homem
é hermeneuta holográfico
é haxixe hipnótico
é hierofante herético
   hacker

homem que é homem
é homo
é hétero
é humano
   hardware

homem que é homem
é com h
  de hemorragia menstrual
  de hímen complacente
  de harém
      haicai 

homem que é homem
é herói e heroína
é Hermes e Helena 
   habitat de alma fêmea

virginia finzetto

terça-feira, 30 de maio de 2017

INTRANSITIVOS


a chuva é para são pedro como a lágrima é para a menina dos olhos. tempo em que trovões são como lamentos, ambos a pedir atenção e silêncio para acolher o justo sentido que jaz intransitivo. não está acostumado a ouvir recados aquele que se apega a qualquer antes, alheio ao efêmero de todo instante sempre aguardando um mesmo depois. 


virginia finzetto

quinta-feira, 25 de maio de 2017

CAIR DA TARDE

em tardes mornas, lembro de mim na calçada ouvindo os barulhinhos da noite chegando e a contumaz merencória que descia para me abraçar. eu era criança, e tudo o que sentia era uma profunda e inexplicável saudade de casa. mas eu nunca havia estado em outra casa... e esse aperto solitário durava o infinito do trajeto dos ponteiros do relógio a percorrer exatos trinta minutos, que coincidia com a ave-maria que minha avó recitava religiosamente todos os dias. eu entrava para ouvi-la murmurar e, só assim, no recato da prece de seu colo, toda minha ausência podia ser dissolvida. 

virginia finzetto

terça-feira, 16 de maio de 2017

GÊNESIS

quero ver você solto no espaço, viajando infinitamente pelo vácuo escuro entre as constelações, sem ter com quem conversar. quero ver você acordar e achar que teria sido melhor contribuir, sem reclamar, atendendo aos apelos daquele pastoreco, aquele que arranca tesouros dos fiéis sem jamais ter se questionado sobre quem de verdade habita seu próprio coração. quero ver você suportar o vazio de sua zona de desconforto puxando pela memória qualquer canção do Roberto. quero ver seu mundo cair e não restar data alguma para comemorar. porque tudo é absolutamente o insuportável nada. e o nada precisa ser preenchido com doses absolutas de qualquer tudo

virginia finzetto

quinta-feira, 27 de abril de 2017

DAS 10, A MENTIRA MAIS VALIOSA DA MINHA VIDA

Era maio de 82, eu tinha uma Brasília amarela. Naquela tarde, eu estacionei em uma vaga na rua, bem em frente a uma casa lotérica, e fui fazer compras. Na volta, resolvi entrar para fazer um joguinho, antes de ir embora. Saí e lembrei que havia me esquecido de comprar frutas e tinha um mercadinho bem perto dali. Então, abri o carro, joguei as sacolas dentro, e nessas de correria, larguei o bilhete e o troco dentro de uma delas. Depois de meia-hora, eu volto cheia de sacolas quando noto que as outras não estavam mais ali. Cacete!... na pressa, eu esquecera também de trancar o carro, pensei. Fiquei muito triste com o roubo, mas entrei no veículo e fui em frente. Já lá em cima, antes de eu virar para entrar na minha rua, vi um sujeito agachado na calçada vasculhando umas sacolas, que, imediatamente, reconheci como sendo minhas. Quase dei um cavalo de pau ao frear e acabei estacionando no meio da rua. Desci ao berros, chamando o cara de todos os palavrões. Nesse mesmo instante, vinha subindo a polícia com a sirene acionada. O cara, sentindo-se ameaçado, conseguiu fugir correndo, como quem sai catando coquinho no chão, largando tudo pra trás. Eu fiquei muito feliz com a sorte de ter recuperado minhas compras e, quando me viro em direção ao meu carro, vejo a viatura da polícia queimando os quatro pneus na freada bem em cima da minha Brasília. Largo tudo e coloco as mãos na cabeça, ao ver descendo os dois policiais com armas apontadas para mim. O susto foi tão grande que quase desfaleço, porque, se eles tivessem amassado minha caranga, eu teria que arcar com aquele preju sozinha. Aí um deles, de praxe, pediu minha habilitação e os documentos do carro, eu entreguei tudo e, depois de eles constatarem o equívoco, me liberaram. Entro no carro e fico alguns minutos recuperando meus sentidos. Fui embora com o coração ainda disparado de tanta emoção. Uns metros mais adiante, eu vejo a polícia, a mesma que havia me abordado, apontando armas agora para um sujeito, o mesmo que havia me roubado. Ele, com as mãos na cabeça, e uma sacola no chão, ao seu lado. Ahhhhh, pensei, maldito bandido, conseguiu fugir levando uma de minhas compras!Imediatamente parei o carro e fui lá tirar satisfação. Os policiais, reconhecendo a Brasília amarela começaram a discutir entre si, ora apontando a arma para o bandido, ora para mim, porque desconfiaram que EU fosse cúmplice do larápio. Depois de muitas explicações, consegui convencê-los de que EU era a vítima, e que havia parado ali exatamente para recuperar o resto das minhas compras, ou seja, a sacolinha que estava ali bonitinha no chão. Resumo da ópera: das 10 sacolas de compra, NAQUELA estava o bilhete de loteria, ainda com o troco! No dia seguinte saiu o resultado, e eu havia feito a quina sozinha.

Quase enfartei! Demorei muito a me recuperar do susto. Perdi o sono, já não comia mais, tamanha a ansiedade e o temor que tomaram meu corpo e minha alma. Durante um tempão fiquei com o bilhete, olhando toda hora para ele, conferindo os números com o recorte do jornal com o resultado e guardando-o em um lugar seguro. Repetia o ritual quase que diariamente, só pensando no que eu deveria fazer. O prêmio era muito alto, iria mudar radicalmente minha vida. E eu me perguntava se estava preparada para isso. Até que um dia, decidi ir resgatar o prêmio, assim de supetão, como quem não quer nada. Estacionei minha Brasília amarela bem em frente à Caixa Econômica Federal, desci firme e resoluta, com a bolsa à tiracolo, quando, ao olhar para a esquerda, vejo um sujeito se aproximando a passos largos em minha direção. Mas, assim que eu o reconheci como sendo o mesmo ladrão, aquele que havia roubado minhas compras do carro há meses, ele deu um puxão na minha bolsa e fugiu com ela em disparada. Nessa hora, não havia nenhum policial por perto, não havia nenhuma viatura em alta velocidade e não houve nenhum déjà vu. Só o meu coração colapsou e eu nunca mais me recuperei desse episódio.  Moral real deste conto de ficção: um raio não cai no mesmo lugar, mas pode infernizar a vida de uma mesma pessoa por várias encarnações.

virginia finzetto

quinta-feira, 20 de abril de 2017

XADREZ

não me atreveria a esbarrar em um ângulo sequer da inteligência que rege meus órgãos. não haveria apologia de uma causa boa que reparasse tal imprudência nem instância que me pudesse salvar de um grande desastre. risco um fósforo em total rebeldia para as coisas que são a mim permitidas. o que significa dizer que liberdade é palavra oca para os que dominam a técnica do xadrez. enquanto me estapeio com o bispo e domo o cavalo, ou jogo as tranças da torre esperando o rei trair a dama, os peões se arriscam em pequenos passos e não temem o sacrifício a que se destinam. e só preencho um quadrado com um número certo não antes nem depois de preencher um outro. fora isso, tudo é palpite. se nisso se acerta, chama-se tal feito de sorte e segue-se cego esperando um novo milagre. mas poderia se acertar muito além com o conhecimento da mais pura técnica. 


virginia finzetto