quarta-feira, 17 de abril de 2019

DIÁRIO DO MAGREBE

desde o dia em que descobrira que seus desejos eram atendidos, Ana passou a pensar menos em si. não havia premeditado mérito nessa atitude, não havia pressuposto ganho pessoal, não havia sequer um motivo nobre. apenas uma súbita visão acontecera certa manhã e soube que parte importante do mundo precisava estar resolvida para que ela voltasse a sorrir de verdade. tinha uma pitada egoica à solidariedade que brotara espontaneamente. entre feridos e moscas, milagres de cura realizavam-se diariamente. a 500 quilômetros de Rabat, a provisão de recursos não era suficiente para aplacar a epidemia por mais uma semana. a toda hora, lembrava-se de que estar viva dependia mais dessa força do que da vacina que se recusara a tomar. à noite, quando a temperatura caía muitos graus, o acampamento silenciava e ela, envolta em pesadas túnicas de lã, admirava as estrelas. seu camelo amarrado, sua alma voava.sem a luz, tudo se mostra outra coisa. a madrepérola verdadeira de abalone, que não reflete seu verniz iridescente à noite, guarda as proporções do que ela estava sentindo ao olhar aquele céu. era de dia que se podia pensar no mar de estrelas fixas a comandar os destinos, mesmo sendo ele apenas aparentemente inexistente. na primeira vez em que estivera no Saara, não havia deslocamentos de luzes na Via Láctea. a corrida espacial apenas começara e era praticamente impossível uma disputa de satélites orbitando a Terra. agora, ficava em dúvida sobre a realidade dos luminares, o sentido do que verdadeiramente brilhava e o engano das artificialidades a iludir os sentidos. viu a estrela Polar e pensou que a ninguém havia sido negada uma pista. algumas são percebidas de olhos fechados.
preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. teve a mesma sensação dos desequilíbrios que tivera na ocorrência de levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.agora todos esses registros pareciam fazer parte de outra Ana, de uma história inventada para mantê-lo vivo em sua memória.
 
de passagem por Iguelmimene, recordou-se de que o povoado tinha menos de 10 mil habitantes quando o conhecera. no final daquela década, um mundo inóspito revelou valores tão distintos dos seus, que nenhuma descrição de civilizações além do planeta poderia causar tanto impacto quanto o que ela havia experimentado ali. todos funcionando como um só organismo, cujas células não reivindicavam fama exclusiva para si. os berberes, que sempre se mantiveram em festas para preservar sua cultura frente à dominação dos fundamentalistas, mostravam os sinais da verdadeira resistência. naquela visita, ela e Juan, constantemente sob o olhar complacente dos que não compreendem quão fragmentado foi se tornando o Magrebe, destacavam-se como feridas expostas no deserto. talvez eles se preocupassem pela sobrevivência dos que adotaram a individualidade como forma de vida. 

assim que o jipe deixou para trás as muralhas escaldantes do ksar, Ana tirou da bolsa o mesmo porta-kohl que comprara em Tânger, há 30 anos, e lembrou da última vez em que Juan acariciara seus olhos. chorou... chorou muito sua nostalgia, mas distraiu-se com as tâmaras oferecidas pelo guia. a viagem de retorno seria longa e certos caminhos jamais deixariam de existir. 

às vésperas de seu retorno à Gibraltar, caiu um atípico e intenso temporal no lado marroquino do mediterrâneo. o fato soou como um aviso dos deuses à decisão de Ana em abandonar suas buscas por Juan. da janela do quarto da modesta pensão, ficou imaginando como seria se tivesse que passar pela experiência de viver prisioneira. não bastava ter que se conformar como hóspede de um corpo, uma reclusão forçada seria uma violência contra sua alma que tanto lutara para aprender a ser livre. a noite se aproximava e nenhuma notícia de que o clima adverso poderia se acalmar em breve. todos os ferries estavam suspensos. resignou-se em se espelhar no exemplo daquela água que escorria pela vidraça, moldando de várias formas sua existência entre o céu e a terra, aceitando ser o que era naquele momento. logo se distraiu pensando sobre as coisas fora de uma ordem lógica como era a Espanha marroquina e a Inglaterra andaluza. acendeu a luz do abajur e voltou a fazer suas anotações sobre a ponte traçada entre os dois destinos, sem adivinhar a surpresa que iria ter no jantar.


virginia finzetto

sexta-feira, 5 de abril de 2019

BREVE

diante do quadro irreversível, estaremos encerrando nossas atividades na Terra.

assinado:Deus

virginia finzetto

NAMASTRETA

o ego que habita em mim 
não se reconhece, 
na maioria das vezes, 
no ego que habita em você

virginia finzetto

quinta-feira, 4 de abril de 2019

DE ROTA

país de rota
pneu roto 
que roda
na estepe

virginia finzetto

A COR DA

a-cor-da realidade
é roxa beliscão

virginia finzetto

ALÉM DA LENDA

se você quer morrer para ficar na presença de Deus, saiba que vai ter que entrar numa fila imensa. lá na frente, ocupando o primeiro lugar, está um desconhecido que, dizem, é da época de Adão. ele avisou ao de trás que pediu que o de trás avisasse o de trás, e assim sucessivamente, para que avisassem os que chegavam. parece que houve muito ruído nessa comunicação entre as pessoas que ainda não estavam na presença de Deus e o último que acabava de chegar, ainda carregado de vícios terrenos, tentava furar uma brecha, um atalho na bicha, mas todos gritavam: "nós avisamos!". enquanto isso, corre a informação, entre um grupo de sábios, de que Deus mesmo não está nem aí.

virginia finzetto

POESIA

poesia
é um poema
com presença
de espírito


virginia finzetto