sexta-feira, 31 de agosto de 2018

INDOMÁVEIS

completamente alheia, melissa dorme na minha cama. parte dela está na nesga de sol que entra pela janela, enquanto sua cabeça repousa sobre uma pata dianteira, a outra, por baixo do corpo, aparece e se move em pequenos espasmos. estaria ela sonhando ou seria reflexo mecânico da pressão ocasionada pelo relaxar de seu corpo? a ponta da língua, da espessura de um papel, repousa imóvel entre os dentes de sua pequena boca entreaberta. é de uma entrega invejável essa felina. alheia como o tempo que atropela a tudo sem parar e sem nenhuma pré-intenção, eles seguem um curso incompreensível aos humanos, que treinam, em vão, querer dominar a ambos. mais do que com a gata, quero competir com o tempo, antecipar-me à catástrofe de não conseguir conhecer partes do mundo antes de a próxima guerra estourar. mas para além daquelas dunas, seja do deserto ou de qualquer praia distante, temo que me aguardará uma barraquinha de artigos chineses. 

virginia finzetto

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

CLAUSURA

ateísmo que enclausura
algema a liberdade
tanto quanto pastores e curas
pregam o seu fim
do centro ao arrabalde


que compartilhem entre si seus pastos


pois o que almejo é de alcançável altura
além dos pregos de toda cruz e usura
é minha tangível imaterialidade


virginia finzetto

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

ENQUANTO

na cuba da pia havia um copo, que se enchia todo dia, mas ela não via. nada vazava, a torneira estava bem fechada. então qual seria o mistério? ficou ali observando e nada de anormal acontecia. resolveu ficar de prontidão. esvaziou o copo e o colocou no mesmo lugar. por um bom tempo concentrou-se nessa vigília. quando se deu conta, havia perdido ali um dia inteiro. no interior do copo havia água. como podia? nesse momento ela não piscou e um pingo caiu. aí ela compreendeu o sentido das palavras 'enquanto' e 'sincronia'. alguns milagres são não tão sobrenaturais assim...  

virginia finzetto