domingo, 26 de abril de 2020

PARAR PARA PARIR

era abril quando pressenti
que devia me fechar
era maio quando decidi
que minha vida era maior
era um ano de mudanças
que me abria para o amor
era um instante de abertura
que engendrava gravidez
era um ciclo de abundância
que se gestava em meu útero
era esse momento de fartura
que permitia nova colheita
era um tempo de ser mulher
que nascia para outra era


virginia finzetto

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Contos da quarentena

VIRGINIA MARIA FINZETTO – SÃO PAULO – BRASIL

INVISÍVEIS

Desde que cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres procrastinados.
A despensa completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do apartamento. Comparou as fronteiras que se fechavam ao redor do planeta, devido à pandemia de uma nova síndrome respiratória aguda grave, à cena em que o fornecimento de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante e escravizada na colônia do planeta marciano em Total Recall, um clássico do cinema.
Uma chave fecha a porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pelo surto. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?”
Enfim, reclusa e solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade, por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a que vivia lá fora, nos dois casos carregadas de um medo exacerbado e de restrições nas escolhas.
Se eu insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode ser que elas não me sirvam mais quando este perigo acabar. Será que encontraremos uma Terra mais inóspita que o Marte retratado no filme?
Fora, o medo do contágio; dentro, o medo de si mesma.
No entanto, algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia para confortar a si mesma.
 Agora que me sobra mais tempo, não sei mais o que fazer com ele.
Sem os condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a rotina anterior tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu talento não seja assim tão natural. Você tem medo que, sem o Google, seu vocabulário seja parco, sua memória seja curta e sua linguagem, pobre. Você tem medo de ser você!”.

Três semanas e o volume de mensagens repetitivas – de memes, de alertas, de autoajuda, de notícias falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo, outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:  
“Quem é você, Ana Monfort?”.
 − Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas, eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar realidade, mas ninguém está preparado como deveria para enfrentar a finitude anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a menor ideia, mas arriscou pensar que era bem provável que esse pacote de energia invisível ficasse no passado junto com a parte substancial da humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até aqui conhecido.

NÃO DESLIGUE OU DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.

Até o fechamento desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas, se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.