domingo, 31 de outubro de 2021

TRAÇAS

aquele amor sob os lençóis
tinha muitas histórias
de ácaros, peles mortas
e bichos de pé.

virginia finzetto

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

MICROCONTO DIA NACIONAL DO LIVRO

cheio de entrelinhas, o escritor tropeçou no texto e matou o protagonista no primeiro parágrafo.

virginia finzetto

DIA NACIONAL DO LIVRO

sem livros, você não saberia 
que o terror da vida é uma farsa, 
que a realidade é uma comédia 
e que tudo não passa de ficção.

virginia finzetto

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

PODIS CRÉDITO, BANCÁRIO!

-- e qual seria o motivo da requisição do empréstimo, senhor Juvenal?

-- pra fazê uma plantaçãozinha de maconha lá no sítio...

-- mas isso é ilegal!

-- ilegar coisa nenhuma... ô pessoar acha mó legar.

virginia finzetto

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

ADVINHAS E ESCOLHAS

leio minha sorte no casco de um cágado. à luz do dia, seus relevos revelam aos meus olhos linhas de um destino tortuoso, mas, à noite, acaricio o bicho como um pet e leio em braile apenas veredas felizes que eletrizam de esperança meu coração. nada tem autoridade para dar sentido a quem quer que seja sem seu consentimento, pois ninguém está dispensado da diversão que é fazer uma escolha. para os irresponsáveis, segue uma vida de adivinhações e lamentos, mas eu sigo escolhendo o que deve acontecer.

virginia finzetto

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

MICROCONTOS

minha cabeça é como um livro inédito: miolo misterioso ladeado por um par de orelhas.

temendo a morte, seu curriculum vitae passou em brancas laudas.

de boca em boca, seu fôlego acabou-se num suspiro.

virginia finzetto

ACONTECEU NO VELÓRIO

Ligaram de madrugada. Vestiu qualquer coisa sob o casaco, pegou a bolsa e chamou um táxi. Esquecera os óculos. Morta de sono, velou o cara errado até o raiar do dia.

virginia finzetto

microconto na revista Literartéria

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

LUTOS

tenho lembranças dos rituais da minha infância, do tempo em que os mortos eram velados em casa. recordo a dor da partida de um familiar ou de um vizinho e as lágrimas sinceras rolando nos rostos daquela gente querida em cada despedida que vivi. era uma época de compartilhar as alegrias, em conversas de portão e na calçada, e as tristezas, em volta de um caixão na sala, com a mesma presença desse espírito solidário. sei que, mais tarde, viciei em ler os obituários nos jornais imaginando como seria a vida, os sonhos e a causa da morte daqueles desconhecidos. e, a cada um se perguntando "por quê, eu?", minha despedida silenciosa "não se preocupe, vá em paz! agora, isso não importa mais", numa tentativa de dignificar cada ser humano como indivíduo neste mundo. cheguei até aqui para ver, agora, esse desencarne em baciada neste clima de "mal enterra um já morre outro", de milhares de desconhecidos protagonizando um luto em massa, em uma absurda estatística aferida e desejada por uma gente sem amor. peço perdão se hoje me falta ânimo e tempo necessários para manter meu ritual diário e particular, mas penso que se chegamos nessa banalização da morte é porque precisamos com urgência ressignificar a vida para nos devolver nossa defunta humanidade.

virginia finzetto