segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

PIVÔ DE OSSO

tudo começou quando adão e eva 
se sentiram fora um do outro. 
a costela foi só o pivô dessa separação.

virginia finzetto

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

NATUREZA MORTA

a dose de tinta no final da esferográfica

ainda é berçário de letras em gestação

a escrita não recebe a graça da harmonia que amálgama as palavras

se o ato é mecânico

nem a alma acompanha esses esforços por obrigação

então vejo que ela rubrica formulários e anota algarismos de todos os que agora morrem pelo mesmo motivo

números de tempo de vida, de tempo e de vida,

números que destoam dessa vida que se esvai à toa

cifras, porcentagens, estatísticas, altas e baixas,

variações no mercado de ações

que travam o olhar dos ângulos, das arestas, dos pontos de intersecção das curvas na respiração do espírito em nano segundos

nas planilhas tudo virou cepa de nós em conflito cujo mal não se extirpa

imagino isso, enquanto olho minha caixinha de joias

conto e brinco com 12 dentinhos de leite do meu filho, 1 dente do siso despedaçado, 3 unhas e 2 bigodes da gata

e a quantidade de lembranças guardadas nessa natureza morta


virginia finzetto

 

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

DESTINOS

invocava a lei da atração
amando o desejo
de toda contradição

dos quereres de leste a oeste
entre um apê em Madrid
e uma quinta em Trieste
um cruzeiro ao norte
e uma expedição ao sul
o universo da razão
se mostrou mais forte

veio o naufrágio no Mediterrâneo
e, dessas vontades,
o despejo

no resgate da sorte em Ibiza
criou raízes nessa ilha famosa
na qual jamais imaginou viver
fez ali fortuna e família
em sua clínica resort
para tratar gente indecisa

virginia finzetto

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O SOLAR DA DONA CARLOTA

Foram tantos casamentos desfeitos e rebarbas de mudanças, que a casa da sogra virou casa da sobra. O quartinho acabou inteirinho, de despejos, de histórias truncadas, de páginas arrancadas, de livros, de louças, todos autografados com as digitais dos que se foram, para uma nova tentativa ou para outro plano. Sempre assim, no sótão ou no porão, éramos nós, crianças a abrir caixas e baú, de onde surgiam a produção e o enredo para nosso mundo de faz de conta. Solar Lavoisier, foi esse o nome que deram ao castelinho construído nos meados do século passado, onde viveu a dona Carlota, por longos anos, já esquecida de tudo. Que Deus a tenha.


virginia finzetto

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

CRÔNICA DE UMA VAGINA POrrETA

Desde que fora demitida de seu último emprego fixo, ela estava convencida de que aquela era a hora de parar de trabalhar para os outros. Decidiu abrir sua própria empresa. Sabia que não teria os mesmos ganhos que antes como editora, mas ficou feliz com a possibilidade de uma nova rotina, poder conciliar melhor seus horários.

Nos intervalos entre um trabalho e outro, ela voltou a escrever poemas e, com o tempo, passou a publicar em grupos e páginas pela internet essa arte que fazia às escondidas.

Quem imaginaria em um passado nem tão remoto que as pessoas se conectariam globalmente por redes virtuais e, que, estas, também, mostrariam o que há, do que sempre houve, de esquizofrenia subterrânea da civilização moderna.

Saíram dos armários para as passarelas virtuais o que de melhor e de pior cada um guardou em seu próprio interior durante as décadas de 90, 80, 70... até sei lá qual, quando ainda não existia essa forma de se divulgar vaidades e importâncias pessoais com tanta facilidade.

Para os preconceitos mais evidentes, não puníveis no passado, agora havia leis, mas não uma real transformação de valores humanos que justificasse todo o veneno que circulava na internet, evidenciando o quanto ainda éramos perversos, machistas, homofóbicos, racistas e violentos.

O viés poético da prosa, que a princípio pensava cultivar sem compromisso, era o que mais lhe agradava, pois, de fato, sentia que algo de si queria se manifestar, as palavras ganhavam força própria, fluíam, dando recados que até então ela não percebia.

Até a hora que topou com seus versos plagiados e o impostor dizendo que eles não tinham autoria depois que ganhavam as redes.

Não gostou nem um pouco da falsa modéstia do invejoso ladrão, embora intuísse que a poesia mesmo não pertence a este mundo, pois é ela que, como uma grande vagina, se abre para engolir para sempre quem a gesta... é a poesia que abriga o poeta, a poeta em seu útero, até a hora que se faz pronta para ganhar a luz... é a poesia que faz, após nascer de parto natural, descansar em banho maria em sua placenta de ideias aquele ou aquela que a pariu, até resolver voltar quando quer.

E foi nesse aconchego de reflexões que ela entendeu sua verdadeira vaidade de assumir ser ‘mãe terrena de poesia’ e, como tal, aceitar que sua cria nasce livre desde a concepção, apenas para ser o que é, existir, e não para lhe pertencer.

A poesia é!, mas a poeta, como toda mãe que zela pela cria que ama, processou o plagiador sem caráter, que sequer pai adotivo merecia ser.

virginia finzetto

terça-feira, 8 de setembro de 2020

DOS TÍTULOS

 "A rebelião das vírgulas" - título do meu próximo livro.
Cada um que o interprete como quiser... 
 
só não diga que não avisei!

virginia finzetto

AINDA NA PANDEMIA

a doença que revela amores: 
os próximos, 
os distantes, 
os terminais 
e os que só ficam 
na lembrança.

virginia finzetto

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

PRESENTE

me peguei olhando detalhes 
como se eu voltasse a ser 
a aluna disciplinada e atenta à vida. 
será que assim a morte me esquece?

virginia finzetto

domingo, 30 de agosto de 2020

PANTANAL

é como na guerra. agora nossa vida é prisioneira de uma situação que só conhecíamos dos livros que não foram decifrados a tempo, não há graduação para aprender a dor. essa dor que não entende o porquê do início, e que assim segue atropelando qualquer entendimento pela razão para se instalar como doença autoimune da alma escondida em cada corpo. os que sabem o que praticam seguem impunes. é como o mundo de imagens lindas que conhecíamos de uma revista, que agora arde diante da impotência dos nossos olhos na fogueira que vai enrugando e transformando suas páginas em cinza, pó, vítima de uma crueldade inimaginável. mas é mais um dos episódios que a banalidade, ávida de novas manchetes de frisson, não nos deixa tempo para as despedidas, pantanal. é a própria guerra.


virginia finzetto

sábado, 29 de agosto de 2020

terça-feira, 25 de agosto de 2020

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

PLASMA

buracos de minhoca
unem as células cósmicas
por onde circula o plasma da criação e,
em dia de tempestade na Terra,
as veias dilatadas dos raios no céu
mostram a face de um deus
com sangue nos olhos
prestes a derramar suas ordens,
para alguns ira e fúria,
para outros, alimentos
em gotas de inúmeras
interpretações

de toda a vida no planeta,
a natureza e os de acordo agradecem

virginia finzetto

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

DAS 10, A MENTIRA MAIS VALIOSA DA MINHA VIDA!

Era maio de 82, eu tinha uma Brasília amarela. Naquela tarde, eu estacionei em uma vaga na rua, bem em frente a uma casa lotérica, fui fazer compras e, na volta, resolvi entrar para fazer um joguinho, antes de ir embora. Saí e lembrei que havia me esquecido de comprar frutas e tinha um mercadinho bem perto dali. Então, abri o carro, joguei as sacolas dentro e, nessas de correria, larguei o bilhete e o troco dentro de uma delas. Depois de meia-hora, eu volto cheia de novas sacolas quando noto que as outras não estavam mais ali. Cacete!... na pressa, eu esquecera também de trancar o carro, pensei. Fiquei muito triste com o roubo, mas entrei no veículo e fui em frente. Já lá em cima, antes de eu virar para entrar na minha rua, vi um sujeito agachado na calçada vasculhando umas sacolas, que, imediatamente, reconheci como sendo as minhas. Quase dei um cavalo de pau ao frear e acabei estacionando no meio da rua. Desci aos berros, chamando o cara de todos os palavrões. Nesse mesmo instante, vinha subindo a polícia com a sirene acionada. O cara, sentindo-se ameaçado, conseguiu fugir correndo, como quem sai catando coquinho no chão, largando tudo pra trás. Eu fiquei muito feliz com a sorte de ter recuperado minhas compras e, quando me viro em direção ao meu carro, vejo a viatura da polícia queimando os quatro pneus na freada bem em cima da minha Brasília. Largo tudo e coloco as mãos na cabeça, ao ver descendo os dois policiais com suas armas apontadas para mim. O susto foi tão grande que quase desfaleço, porque, se eles tivessem amassado minha caranga, eu teria que arcar com aquele preju sozinha. Aí um deles, de praxe, pediu minha habilitação e os documentos do carro, eu entreguei tudo e, depois de constatarem o equívoco, eles me liberaram. Entro no carro e fico alguns minutos recuperando meus sentidos. Fui embora com o coração ainda disparado de tanta emoção. Uns metros mais adiante, eu vejo a polícia, a mesma que havia me abordado, apontando armas agora para um sujeito, o mesmo que havia me roubado! Ele com as mãos na cabeça e, ao seu lado, uma sacola no chão. Ahhhhh, pensei, maldito bandido, conseguiu fugir levando uma de minhas compras! Imediatamente parei o carro e fui lá tirar satisfação. Os policiais, reconhecendo a Brasília amarela começaram a discutir entre si, ora apontando a arma para o bandido, ora apontando-a para mim, porque desconfiaram que EU fosse cúmplice do larápio. Depois de muitas explicações, consegui convencê-los de que EU era a vítima e que havia parado ali exatamente para recuperar o resto das minhas compras, ou seja, a sacolinha que estava ali bonitinha no chão.


Resumo da ópera: das 10 sacolas de compra, NAQUELA estava o bilhete de loteria ainda com o troco!
No dia seguinte saiu o resultado, e eu havia feito a quina sozinha.
Quase enfartei! Demorei muito a me recuperar do susto. Perdi o sono, já não comia mais, tamanha a ansiedade e o temor que tomaram meu corpo e minha alma. Durante um tempão, eu fiquei com o bilhete, olhando toda hora para ele, conferindo os números com o recorte do jornal com o resultado e guardando-o em um lugar seguro. Repetia o ritual quase que diariamente, só pensando no que eu deveria fazer.
O prêmio era muito alto, iria mudar radicalmente minha vida. E eu me perguntava se estava preparada para aquilo. Até que um dia, decidi ir resgatar o prêmio, assim de supetão, como quem não quer nada.
Estacionei minha Brasília amarela bem em frente à Caixa Econômica Federal, desci firme e resoluta, com a bolsa à tiracolo, quando, ao olhar para a esquerda, vejo um sujeito se aproximando a passos largos em minha direção.
Mas, assim que eu o reconheci como sendo o mesmo ladrão, aquele que havia roubado minhas compras há meses, as sacolas que estavam no meu carro, ele deu um puxão na minha bolsa e fugiu com ela em disparada.
Nessa hora, não havia nenhum policial por perto, não havia nenhuma viatura em alta velocidade e não houve nenhum déjà vu. Só o meu coração colapsou e eu nunca mais me recuperei desse episódio.
Moral real desse conto de ficção: um raio não cai no mesmo lugar, mas pode infernizar a vida de uma mesma pessoa por várias encarnações.

virginia finzetto


republicação do conto de 27 de abril de 2017

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ANDRÔMEDA

I

quantos clichês você coleciona para explicar a saída para o caos do mundo? quantos desses foram comprovadamente eficazes na sua vida? Ana não pestanejou nas respostas e concluiu o formulário de pesquisa para imigrar para Andrômeda, não a galáxia, embora não deixasse de sê-la, se comparada com a distância astronômica que esta queria manter da humanidade normal, segundo seu estatuto, mas uma comunidade cujo endereço era sigilo até para quem se candidatava. e assim, de olhos fechados, ela apostava que a felicidade estaria fora. arrumou sua mochila com poucos pertences pessoais, algumas fotos para recordar o passado, quando se sentisse saudosa, guloseimas para a viagem e a roupa do corpo. quando os ponteiros estavam quase à meia-noite, alguém desesperado gritava seu nome em frente do edifício em que morava. Ana aproximou-se da janela do sétimo andar e seu coração balançou. ali estava ele, todo molhado de chuva, a máscara se desfazendo junto às lágrimas de desespero. gritava alto seu nome e uma lista de impropérios, sendo a palavra covarde a que mais lhe tocava. Ana quis descer para conversar cara a cara, mas achou melhor não se colocar mais uma vez à prova. dessa vez não iria ceder. precisava tentar uma saída, antes de reincidir em atravessar seu pulso com outra lâmina afiada. queria se surpreender ainda com este mundo, com algo que pudesse acabar com sua fixação por Hu, que lhe asfixiava com sua mania de parceiro carente, de querer se completar por meio dela. Ana não queria ser metade de nada, sua busca era a de voltar a ser inteira. mas Hu era forte, magnético. parou de drama e ficou estático, com a cabeça levantada, hipnotizando-a com o olhar. então ela amassou o tecido da blusa próximo à garganta, segurando a raiva, e acenou um sim com a cabeça.

II
 
Andrômeda e Via Láctea, assim se denominam as duas comunidades localizadasaté onde se sabe,  em continentes diferentes no globo, possuem métodos questionáveis, à luz da inteligência ética, de sondar a alma de cada humano a fim de exercer sobre ele uma influência subliminar, rebaixando-o a títere sem alma ou elevando-o a divindade. os que não têm nenhum poder de questionamento interior são facilmente arrastados para o sonho de viver em Via Láctea. ali aproveitam, por tempo indeterminado, seus mais inconfessos desejos, sem que por isso sejam vítimas de qualquer punição. seus únicos tributos seriam exalar com frequência humores e emoções sem autocontrole, para que os sugadores possam se manter vivos e abastecidos em seus poderes de manipulação. os questionadores da vida, os sofredores obsessivos, os esquizofrênicos e os suicidas apostam em Andrômeda como última chance de dar a si mesmos, antes de abandonarem o mundo, uma oportunidade de mudança radical. desse lugar não se tem muitas notícias, a não ser a de que seus mentores escolhem a dedo o candidato, sondando-o com métodos que vasculham qualquer esconderijo em seu íntimo. ambas as comunidades operam secretamente e só vem à luz o que é para  facilitar suas arregimentações, mas Andrômeda é um mistério, já que ninguém escapou dali.

III

o temperamento de Hu se parecia muito pouco com o de Ana. ele já havia entrado e saído de tantas seitas e escolas de autoconhecimento que era figura conhecida nos evidentes rastros em que a Via Láctea podia operar oficialmente. na última vez que deixou de seguir um desses atalhos, desiludido e dizendo a si mesmo que não se meteria
 em outra fria, entrou em um boteco de esquina e ali viu Ana, em sua singular beleza, por quem se apaixonou à primeira vista. ficou surpreso com sua reação, então disfarçou. de outra mesa um pouco afastada, sorvendo calmamente seu destilado preferido, Hu olhava de soslaio para aquela figura miúda, aparentemente frágil, segurando à sua frente um copo meio cheio de água mineral. calculou, pelo conteúdo da garrafa, que ela acabara de chegar. então, começou a espaçar mais entre um gole e outro, para dar tempo de acalmar seu coração. tirou um livro da mochila e inclinou-se fingindo interesse na leitura. nem completou um parágrafo, levantou a cabeça e viu que ela já não estava mais ali, apenas um copo vazio e a garrafa pela metade. de rompante, agora sem nenhum constrangimento, olhou em todas as direções e nada. nesse intervalo, Ana havia conferido uma mensagem no celular, levantara-se de súbito e, sem ser notada, saíra apressada para a rua.

IV

na esquina próxima estava Antum, codinome do contato do partido, para lhe passar mais uma tarefa urgente. Ana pegou dele a bolsa e a colocou a tiracolo, sem perguntar sobre seu conteúdo. ambos trocaram um aperto de mão e se dirigiram rapidamente em direções opostas. apreensiva, com as mãos geladas, ela desceu a escadaria do metrô a passos rápidos. estava tão nervosa que não conseguia passar pela catraca, até se dar conta que estava entrando pela saída. como se sentia idiota em denunciar sua fragilidade ao tentar cumprir uma missão à qual jamais havia sido talhada, a não ser para provar a si mesma uma coragem que nunca tivera. lutava clandestinamente da mesma maneira que sobrevivia escondendo-se de si. aquilo já estava passando dos limites que podia suportar, pois esse medo começava a superar o pavor de enfrentar seus monstros internos. queria largar a encomenda em qualquer banco do vagão e abandonar aquela loucura. depois refletiu e se convenceu de que colocaria em jogo a vida de outras pessoas, mas jurou que esse seria o último episódio de sua missão. cinco estações à frente, desceu e logo avistou na plataforma o homem mais velho, com as características que foram passadas, a quem deveria entregar a encomenda. checaram as senhas, outro aperto de mão e Ana virou as costas. quanto menos soubesse, melhor seria para a segurança de ambos. só falhou na hora de seguir o combinado, que era voltar pelo mesmo trajeto. e foi nessa marcada que ela dançou.

V

não havia quase nada que não estivesse sob a vigilância sigilosa da polícia política e de seus agentes. para eles, tudo poderia ser controlado por meio de uma inteligência artificial com algoritmos de espionagem de última geração. quando necessário, faziam um grampo direto na fonte. prisão e tortura somente em último caso, já que o aparato funcionava de modo satisfatório quando o poder se travestia de democracia. acontece que algumas organizações, tendo estudado profundamente as articulações comuns praticadas sob a intervenção da Via Láctea, também utilizavam métodos de infiltração na polícia, para tentar se defender de possíveis ataques, disputando nesse cenário um complicado jogo não percebido pelos cidadãos comuns, em geral entorpecidos pela rede de controle subliminar das mídias cúmplices.

à parte, sustentado e dirigido por um sofisticado corpo de códigos secretos - independentemente da ideologia que estivesse no poder – estava o “partido”, que vinha atuando nos bastidores da história através dos séculos com uma prática herdada de antigos ensinamentos de Andrômeda. aleatório como um caleidoscópio associado a uma rigorosa combinação de gematria entre diversos sistemas abjad, a verdade se ocultava em mensagens aparentemente tolas - muitas vezes em  ilustrações que incluíam piadas ou frases de autoajuda atribuídas geralmente a falsos autores -, que eram passadas à luz do dia, aos destinatários certos, por qualquer aplicativo telefônico ou pela internet, sem levantarem suspeitas ou serem  decifradas por quem não tinha o domínio da técnica. 
uma vez ciente e adepta da missão para a qual fora recrutada e das regras básicas de como utilizar a decodificação que lhe competia, Ana ganhara a função de conexão entre duas pontas - ambas sempre com falsas identidades e que não se conheciam entre si. para isso, acessava as chaves que abriam apenas os códigos exatos àquela tarefa, exclusiva, que jamais se repetia. Ana era um elo que não sabia do antes nem do depois e sequer tinha ideia da extensão da corrente. funcionava como uma peça única que, caso se partisse, encerraria informações desconexas em si mesma. 


VI

Hu tomou o restante de sua bebida em um único gole, pagou a conta e foi apressadamente para a rua, olhando para todos os lados, mas não viu mais Ana. apalpou os bolsos do casaco e da mochila e lembrou que deixara o crachá em cima da mesa da sala. caminhou até seu apartamento, que ficava a poucos quarteirões dali, para pegá-lo, pois sem ele não entraria na corporação. fazia pouco tempo que tinha sido aprovado no concurso para o cargo de investigador, com a intervenção oculta do partido. ele era um dos infiltrados. da mesma maneira que qualquer outro membro, não conhecia a organização além do contato que lhe passava as instruções e que poderia ser acessado a qualquer momento com total segurança. no íntimo, quando aceitou fazer parte do esquema, fora atraído mais pela adrenalina, que ainda sustentava seus altos e baixos de humor adquiridos em outras práticas alienadas da Via Láctea do que pela nobre causa, mas depois se convenceu que fazia aquilo principalmente pelo dinheiro e pelo poder de aquisição material e status que queria manter. sua função basicamente era a de comunicar a tempo ao partido e evitar qualquer prisão de um de seus quadros que tivesse caído.

VII

atordoada pela súbita decisão de abandonar sua missão, Ana acabou se distraindo e desceu mais um andar da estação do metrô, em vez de atravessar para o outro lado da mesma plataforma e voltar até onde estaria Antum. nesse equívoco, a poucos passos da escada rolante, ela viu o homem a quem acabara de entregar a encomenda sendo conduzido pelo braço por dois policiais, um de cada lado. em choque, ela engoliu em seco e percebeu que ele a reconhecera e passara uma mensagem por meio de piscadas.
ainda trêmula, Ana caminhou pela plataforma olhando o chão até avistar, em um canto, a bolsa que ela havia entregue e que, por astúcia e total obediência às normas de conduta do partido, fora poupada de ser levada com o seu contato pelos policiais. agachou-se e a recuperou, fechando os olhos aliviada. subiu rapidamente as escadas e tomou o metrô, dessa vez para o trajeto correto, pensando sobre o que poderia significar todo aquele acaso que não era por acaso, que afinal os livrara, supunha, de uma enrascada maior.

VIII

em outro ponto previamente combinado, a poucos metros de onde o encontrara antes, o rosto de Antum, que a viu voltando com a encomenda, expressou um ar preocupado de interrogação. Ana devolveu-lhe a bolsa e contou o que tinha acontecido. imediatamente, ele pegou o celular e enviou uma mensagem, depois deu um sorriso largo e convidou-a para um café, dizendo que esperasse pelas instruções seguintes, pois dali mesmo ela deveria ir até aquele senhor que fora preso e libertá-lo.

àquela altura, já em pânico, Ana disse um não tão alto que o assustou. primeiro tentou lembrá-lo que pelas normas ela jamais poderia realizar outra tarefa vinda de um mesmo contato. depois argumentou que estava deixando, naquele instante, qualquer missão, pois não tinha mais condições psicológicas para prosseguir. Antum concordou sobre seu afastamento definitivo, mas, antes, lembrou-lhe deque se tratava da mesma tarefa e só ela poderia completá-la. seria mais arriscado envolver outra pessoa da célula.

sem muita margem para outros argumentos, e crendo que estaria livre após isso, ela concordou. logo ele recebeu a mensagem com as instruções do que ela deveria fazer. despedindo-se, Antum lhe deu a mesma bolsa para ser entregue de novo ao contato e, já prevendo sua pergunta, disse que dessa vez não haveria problema, eles não seriam molestados nem interrogados e teriam segurança garantida. 
quando o partido afirmou que funcionava, não estava blefando, ela deveria confiar. mesmo assim, Ana estava decidida que seria o último incidente no qual iria participar. 


IX


Hu se dirigira para outro posto de delegacia e estava preparado para intervir na libertação de um dos seus, mas vê-la novamente naquela situação tão inesperada o desconcertou. não é possível, pensou, todo aquele acaso não era por acaso! então ela também é uma das nossas? fazendo muito esforço para entender e conectar os pensamentos que lhe assaltavam a mente, por um momento supôs que tudo não passava de uma farsa, que fora uma armação do partido para colocá-los frente a frente, um encontro mais do que marcado. mas por que precisaria dessa volta imensa se o primeiro já havia acontecido naquele bar horas atrás? é muita loucura pensar que encaixariam outras múltiplas narrativas para que tudo parecesse natural. não, só um grande estrategista seria capaz de fazer ferver no caldeirão das probabilidades a fórmula exata para casar inúmeras incógnitas! isso não era obra do partido, com certeza. ou teriam mesmo tanto poder assim sobre os fatos e a vida das pessoas? 
alheia a tudo e sem demonstrar sinais de ansiedade, Ana assinou o alvará que estava sobre a mesa do agente e fez um sinal positivo para o senhor grisalho, inclinando sua cabeça para a saída. Hu estendeu-lhe a mão num gesto formal e, sorrateiramente, enquanto fingia apertá-la em sinal de despedida, olhando-a firmemente nos olhos, entregou-lhe um pequeno papel dobrado, enquanto dizia que já estavam liberados.


X


afastados daquele lugar que cheirava a terror e medo, de tantas histórias de presos políticos que não voltaram mais a ver a luz do sol, ela finalmente entregou a bolsa para aquele senhor grisalho de comportamento imperturbável e nunca mais o viu.
o ponto final nesse livro de suspense deu origem a outro enredo que a capturou sem prólogos e legendas, sem deixar a opção da leitura que tinha intenção de fazer sobre si mesma.
Ana soube desde aquele instante em que suas mãos se tocaram que ela poderia escapar das tarefas secretas do partido que acabara de abandonar, mas não a de ceder ao desejo de voltar a encontrar aquele homem que sonhava ser o último de sua vida. a lembrança daquele vigoroso e penetrante olhar era o seu novo desafio e então ligou para o número que ele havia escrito no bilhete - início de um amor cheio de disputas, de muita raiva e tesão. perdas e vitórias.
seu romance passional com Hu, repleto de palavras que nomeavam o mais profano e lascivo que poderia constar na literatura amorosa pornográfica, cabia em um minidicionário compacto de bolso. foram exatos 365 dias de uma convivência sem fôlego, até aquele fatídico dia, marcado com um X na folhinha da agenda, em que ele arrombara a porta do banheiro para salvá-la de si mesma, já desfalecida em água e sangue jorrado de seu pulso. acompanhou-a pelo tempo em que ficara hospitalizada, mas depois veio o fim. Ana, frustrada em seu desejo de se despedir da própria vida, deu adeus para ele e mudou-se para outra cidade, sem deixar rastro. passaram-se os meses e veio a pandemia.

XI

agora ele estava ali na rua, olhando para ela debruçada na janela do sétimo andar, testando mais uma vez sua vulnerabilidade e prestes a fazê-la abortar a última chance de iniciar outra jornada fora desse mundo de turbulências, sem apegos e falsas promessas de amor de sua última relação tóxica, enquanto ela repetia o sinal afirmativo de que desceria para encontrá-lo, pensando em quem teria passado seu paradeiro.

XII

ao vê-lo ali tão próximo, Ana se esforçou para não demonstrar suas saudades. em vez disso, perguntou com voz rouca e irada como ele havia descoberto seu endereço.

frágil e emocionado, Hu revelou naquele momento uma face que ela desconhecia. desculpando-se, baixou a guarda encobrindo aquela bravata de macho alfa enquanto minutos antes a ofendera aos gritos. devagar,  aproximou-se e a envolveu em um abraço terno, sem parar de chorar. depois retirou calmamente sua máscara e a beijou suave e demoradamente nos lábios.

por um tempo incontável, eles ficaram ali recebendo a chuva e trocando carícias de outro tipo, diferente do que se acostumaram como adictos daqueles hormônios sexuais de fazer perder a cabeça.

sem palavras, ela o conduziu até o apartamento, onde despiram as roupas encharcadas e se aqueceram com banho, cobertas e bebidas.


XIII

sentados de frente um para o outro, Hu iniciou a fala. primeiro, ele havia chegado ali por ordem do partido, que sempre soube de cada passo que ela deu, mesmo depois de ter abandonado a missão. segundo, que o partido era também o responsável por vetar seu desejo de imigrar, que ela confirmaria em breve pelo comunicado oficial que viria de Andrômeda recusando seu formulário de pesquisa. por fim, que eles não eram mais assunto de interesse do partido e estavam liberados de qualquer investigação.

muda e perplexa, Ana se esforçou alguns instantes para entender a extensão daquela vigilância sobre ela, relacionando as mensagens trazidas por HU com as evidências de que sua vida, ou o que julgava lhe pertencer, de fato nunca esteve em suas próprias mãos.

atento e em silêncio, a face de Hu apenas expressava sinais afirmativos aos insights que ela manifestava. depois, ambos foram repassando os episódios que se destacaram no tempo em que estiveram juntos, esmiuçando cada detalhe de suas tarefas, as coincidências que observaram desde o início em que foram contatados e o que poderia significar todo “aquele acaso que não era por acaso” do encontro, agora sabidamente, predeterminado entre eles.

as suspeitas que ambos se recusaram a enxergar no passado, como se fosse parte de um surto conspiratório, agora se confirmavam nesse desfecho. sim, havia um plano no qual o partido operava em um nível que não se tinha acesso e que os dois, por certo, nunca puderam interferir. talvez fosse um projeto de criação de scripts muito bem articulados para toda a humanidade, em que a pessoa encenasse um papel exclusivo crendo ser esse o seu natural no drama da vida. talvez tudo fizesse parte de uma agenda que deveria ser cumprida acima de qualquer interesse pessoal, cuja compreensão não era simplesmente ordinária.

e assim eles foram, nesse exercício de imaginação até o amanhecer.


XIV

Hu concluiu dizendo que deixaria o cargo de agente na polícia. “sinto muito, Ana, por não ter conseguido enxergá-la como é, fora de minhas... fora de minhas... projeções preconceituosas. eu ficarei aqui, se quiser. eu amo você.”

Ana pegou a mochila que levaria para Andrômeda, abriu e mostrou a Hu o que ela considerava como sua única bagagem dali em diante. agora, sua viagem era uma busca solitária. 

na despedida não houve promessas nem datas para qualquer reencontro. ambos intuíram que deveriam viver em sintonia com o seu próprio tempo.

mas por que o partido deixara todas as pistas para que Hu e Ana confirmassem muitas de suas suspeitas era uma pergunta sem resposta. quem sabe um dia virá a contestação de que o perigo inerente ao livre arbítrio é inversamente proporcional a se estar muito próximo da verdade.


virginia finzetto

terça-feira, 28 de julho de 2020

terça-feira, 21 de julho de 2020

MINHA HISTÓRIA CONTADA PELA ESCRITORA ROBERTA GASPAROTTO

Sabe aquele filme, comer, rezar e amar, em que a personagem tira um ano sabático só para si? Pois é, eu também fiz isso. O ano era o de 1.987, e eu juntei todos os meus recursos financeiros e fui com a cara e a coragem passar, e passear, um ano pela Europa. A ideia era ficar na casa de parentes e amigos, o que permitiria que eu permanecesse o maior tempo possível por lá. Minha primeira parada foi a Espanha, e, depois, fui para a Itália. Fiquei um tempo em Milão na casa de uma amiga, e de lá, partiria para Trento, onde tenho parentes. A única dúvida era se eu deveria passar primeiro em Veneza, que queria conhecer também, ou em Trento. Na hora de comprar o bilhete do trem, foi aquela confusão: como não sei falar italiano, eu e o caixa não nos entendemos de forma alguma. E ele, provavelmente já descolado e meio sem paciência com turistas, resolveu decidir por mim e me despachou para Trento. Lembro que a viagem foi longuíssima, parando em algumas cidades para trocar de trem, na maior correria. Uma dessas cidades em que passei, muito rapidamente, foi Verona, famosa por ser o cenário da peça Romeu e Julieta. Quando, finalmente, cheguei ao meu destino, já era quase noite e batia um vento gelado, típico do outono europeu. Parei em uma espécie de mercearia e, conforme o combinado, liguei para a sobrinha da minha avó, a fim de pegar as coordenadas para chegar à casa da minha família, que ficava em Selva di Levico, perto dali, mas um lugar não exatamente fácil de se chegar. Qual não foi minha surpresa, ao ver que a ligação não completava de jeito nenhum, e, quando completava, dava sinal de ocupado. Como naquela época não tínhamos as facilidades de hoje, como celular e internet, na hora me bateu um pânico, até porque não conhecia nada naquela cidadezinha, e, além disso, meu dinheiro já estava quase acabando. Quando dei por mim, estava no meio da rua, com bastante frio, uma mala pequena e uma mochila nas costas. Só sei lhe dizer que as lágrimas caíam do meu rosto, sem que eu conseguisse controlar. Nesse momento de desespero, eu lembrei de um conto sufi, que havia lido um pouco antes de iniciar minha viagem. O conto se chama Mushkil Gusha, que em árabe, significa 'o dissipador de todas as dificuldades'. A história diz que, aquele humilde de coração, que recorda Dele, e estiver com verdadeira necessidade, sempre irá encontrar o caminho. Esse conto pertence à tradição oral sufi, e é comemorado todas às quintas-feiras (e aquele dia era, exatamente, uma quinta-feira). Quase que imediatamente após eu pensar nessa história, apareceu um senhor, bem velho, e me perguntou por que eu estava chorando. Expliquei que estava perdida, pois não havia conseguido contatar uma parente minha e apesar de ter o endereço, não sabia como chegar na casa dela. Por sorte, o homem, apesar de não entender português, entendia o espanhol, e assim, conseguimos nos comunicar. Solícito, ele foi conversar com uns jovens do outro lado da rua, que, muito cordialmente, me ofereceram uma carona e me deixaram exatamente na casa dos meus familiares. Confesso que a pequena viagem de Trento até Selva di Levico teve um quê de aventura: eu, em um carro pra lá de velho, tendo por motorista um jovem no melhor estilo punk, escutando heavy metal. Ao chegar no local, fiquei certo tempo admirando a casa em que minha família italiana morava, toda de pedras, construída no século XIX. Fui muitíssimo bem recebida pelos meus parentes, e a cereja do bolo foi dormir na mesma cama que pertenceu ao meu bisavô... Um verdadeiro presente! Mas o que mais me intrigou nessa história toda, foi que, antes de entrar no carro, quis agradecer ao homem pela sua generosidade, e, simplesmente, não o vi mais. Até hoje penso, ou melhor, sinto, que aquele senhor foi a personificação do dissipador de dificuldades presente no conto sufi. Certos acontecimentos da vida me fazem crer que coincidências não existem. O que há, são sincronicidades. Como diz belamente a história: peça de coração humilde, e será atendido na medida de sua necessidade. E, realmente, eu vivenciei que assim é!
🇮🇹
Roberta Gasparotto, em: diga-me uma história e eu conto sua memória.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

INVISÍVEIS

Desde que cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres procrastinados.
A despensa completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do apartamento e comparou as fronteiras que também se fechavam ao redor do planeta, devido à pandemia de insuficiência respiratória grave, à cena em que o fornecimento de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante e escravizada da colônia marciana no Total Recall, um clássico do cinema.
Uma chave fecha a porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pela praga. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?” Enfim, reclusa e solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade, por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a liberdade que vivia lá fora, nos dois casos carregados de um medo exacerbado e de restrições nas escolhas.

Fora, o medo do contágio; dentro, o medo de si mesma.

− Se eu insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode ser que elas não me sirvam quando este perigo acabar. Quem sabe, a Terra possa ser menos inóspita que o Marte retratado no filme.
No entanto, algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia a si mesma como desculpa.
− Agora que me sobra mais tempo, não sei mais o que fazer com ele.
Então, sem os condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a rotina tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu talento não seja assim tão natural. Você tem medo de perceber que sem o Google seu vocabulário é parco, sua memória é curta, sua linguagem é pobre. Você tem medo de ser você!”.
Três semanas e o volume de mensagens repetitivas − de alertas, de autoajuda, de notícias falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo, outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:
“Quem é você, Ana Monfort?”
− Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas, eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar realidade, mas ninguém nunca está preparado como deveria para enfrentar a finitude anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a menor ideia, mas arriscou que era bem provável que esse pacote de energia invisível ficasse no passado junto com a parte da humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até aqui conhecido.
NÃO DESLIGUE OU DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.
Até o fechamento desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas, se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.

virginia finzetto

terça-feira, 7 de julho de 2020

BRASIL 171

o a que seguia o b 
que abrigava o c 
que estava dentro do d... 
a quadrilha das letras cursivas, 
todas presas umas às outras.

virginia finzetto

domingo, 28 de junho de 2020

TREM DE ALTA VELOCIDADE

viajar de trem pela sensação que lhe transmite de ser um contínuo sem volta, não importa em qual direção da máquina ou da posição em que se senta. foram mais de trinta anos para finalmente sentir que, naquele momento, o AVE ganhava a velocidade exata e que, pela primeira vez, podia experimentar a certeza de se acertar com ele no mesmo ritmo. acomodar-se e observar que os mesmos olhos que apreciam a paisagem também exploram as maravilhas em seu interior. o maquinista muda de tempos em tempos, assim como a combinação dos passageiros pelos vagões, que dificilmente se repete. o que permanece é o destino, embora cada um tenha uma percepção singular e distinta da mesma viagem. 

virginia finzetto

terça-feira, 16 de junho de 2020

A CONTATADA FOFOQUEIRA

antes mesmo que a pandemia saísse do universo das probabilidades para se materializar no planeta, ela recebeu em sonho a figura estranha de um ser que dizia ter vindo de fora do sistema solar para conversar sobre alguns recados que ela deveria ouvir com atenção e guardar segredo, antes que fosse autorizada a divulgá-los da melhor maneira que encontrasse, a partir do momento que ele a contatasse ao vivo. ficara tão impactada com o episódio, que não conseguira aguardar aquele momento para já começar a espalhar fosse lá o que fosse pelo mundo do mortais. dia a dia, pensava como seria essa sua nova função de mensageira quântica. durante anos aguardou a presença do enviado. mas, como ele não vinha, e completamente esquecida do pedido de se manter discreta, tratou de se fazer importante. quando surgiram as redes sociais, iniciou a dar um pitaco aqui, outro acolá, até ficar conhecida como alguém diferente a ser cultuada no mundo virtual. cheia de falsa importância, passou a acreditar que de fato tinha uma missão do além e já não podia mais escapar de divulgar qualquer recado. mesmo não tendo a menor convicção de manter seu compromisso com a verdade dos fatos, foi se enrolando e fofocando qualquer assunto que atraísse a atenção dos incautos. estes iludidos se divertiam e pediam cada vez mais por aquele tipo de bobagem diária. até que, dias antes de o mundo ser surpreendido por essa guerra subatômica, o ser do sonho se materializou em sua presença. totalmente amedrontada pela energia que ele emanava, teve um treco e caiu dura. naquele momento, tudo foi lhe transmitido telepaticamente de forma direta e objetiva e o recado final: você não tem vergonha na cara? 

virginia finzetto

domingo, 14 de junho de 2020

A ETERNIDADE DOS INSTANTES

— Quando foi inventado o tempo? 

A pergunta inocente de Ana caiu como luva para a costumeira algazarra em sala de aula. Foi o primeiro bullying coletivo que sofreu na vida. Todos os dias, era uma chacota que tentava esmagar um aluno mais tímido, até vê-lo como tomate pisado no chão, sangrando de vergonha. A dinâmica sempre partia de um núcleo de garotos maldosos e ia aglutinando a maioria da classe, que, por contágio e num crescente, ia às gargalhadas, enquanto a vítima se via diminuindo na carteira, desconcertada pela humilhação. 

Sem demonstrarem nenhum riso, as fiéis amigas Norma e Bel. A professora, exaltada, pediu ordem, mas não conseguiu interromper a baderna descontrolada. 

Enquanto isso, como defesa, Ana encontrara refúgio em suas lembranças do dia anterior, no qual o riso solto não era de deboche, mas de alegria de um domingo ensolarado de brincadeiras de rua. Vieram-lhe as imagens do sorteio de chiniqueiro livre para decidir quem iria bater a latinha. Depois, a escolha do perímetro até onde todos poderiam se esconder. Enquanto acontecia a contagem regressiva, todos dispararam em busca do melhor esconderijo. E, cada vez que o batedor conseguia encontrar uma boa parte dos escondidos, uma criança mais esperta corria na frente, chutava a latinha e salvava todo mundo. E o esconde-esconde ia longe.

Já começava anoitecer, quando a turma exausta se deitara na calçada para olhar o céu e as estrelas. E aí alguém notara a falta dela. Encontraram-na adormecida dentro de uma velha casinha de cachorro abandonada no quintal do vizinho. Ela havia batido o recorde de sumiço por dez horas! Essa aventura lhe trouxera a vitória e a o bônus de não ser a batedora por três rodadas.

Quando Ana voltou de seu devaneio, a sala já estava em silêncio. A única voz era a da professora, muito brava, que, sentindo-se desacatada, pedia uma pesquisa, valendo nota, sobre a pergunta que Ana fizera, motivo de tanta piada.

virginia finzetto

[in Coletânea de Prosa, Mulherio das Letras, 2017]

sábado, 13 de junho de 2020

SINESTESIA

no balcão da cafeteria, todos os dias, ela ficava ali por horas. os baristas olhavam-na com a impaciência do "vai querer o quê, dona?", as baristas, mais simpáticas, do "já fez o seu pedido?" . ela dava sempre a mesma resposta: "nada". assim que a porta da entrada se abria, todos se entreolhavam em risinhos de deboches do "lá vem a louca". quando a fofoca ganhou os ouvidos da gerência, veio a resposta que "a moça sempre deixa dez pagos". nos dias em que sua ausência era notada, eles não eram os mesmos. tropeçavam entre si, sem assunto, servindo aos afobados que se apinhavam disputando o seu primeiro. semanas, meses, e nada. acabaram se esquecendo dela, que apreciava apenas o aroma do café. souberam que ela ficara satisfeita com a experiência e que agora frequentava os pontos de fabricação e torra, insistindo para que a deixassem tocar nos grãos e no pó. 

virginia finzetto

quinta-feira, 11 de junho de 2020

MAIS DO MESMO

Na sala, Nicinha tricotava quando, de um pulo, a gata fez a bola de lã rolar de sua mão até a porta da saída. Ali, sua filha se agachou para pegá-lo.
Enquanto enrolava o fio ao redor da meada, Alice lembrou do sonho de viver com o marido em outro país. Às vésperas de partirem, frustrados pela pandemia, sem casa e sem emprego, abortaram os planos e foram morar com sua mãe.

− Estou atrasada! – despediu-se, entregando-lhe o novelo.

Lá fora, após salvar vidas primeiro, o mundo atordoado e desperto do coma induzido tenta ressuscitar o velho modelo da economia.


A vacina que não virá tão cedo é mais uma questão para a ciência resolver.

Pela sobrevivência, muitos viram na crise a chance de quebrar paradigmas, de mudar de cidade e de vida.

Alice, não, foi tentar uma recolocação no escasso mercado de trabalho.

O futuro a assusta, mas é um alívio que o importante para ela estava preservado.

Aprendeu a aceitar imprevistos e a fracionar seus medos, vivendo um dia de cada vez.



virginia finzetto

domingo, 24 de maio de 2020

FRIDA É INSPIRAÇÃO

Lembrei deste ensaio que fiz durante as aulas de desenho, quando ainda estava em Atibaia. Me deu saudades de tudo, inclusive da visita à Casa Azul, em 1996.

Desenho inspirado em uma foto de Frida Kahlo (lápis HB6, lápis de cor Othello (uns exemplares que comprei na Espanha há 30 anos...rs) e colagem de flores de chitão), em 2014.



BOLA DE CRISTAL

clarividência é ver reprises
pular sobressaltos
viver de antecipações

virginia finzetto

MEDIDA PROFILÁTICA


quando veio a praga
conspiraram ser um negócio da china,
ainda um misterioso país distante
no imaginário do povo analógico,
esse que agora se priva de abastecer desejos
de quinquilharias trazidas de lá em contêineres
e vendidas em camelôs

de novo, vê-se a religião a se divorciar da ciência
e essa mesma gente, que também não acreditou
ter o homem pisado na lua, agora quer ganhar as ruas

pobres mortais, contaminados fundamentalistas
matam a si mesmos e aos seus com a ignorância,
mas de dentro de minhas células femininas
versos intuitivos só permitem a verdade
do resguardo em bastante companhia
e o vírus, sem chance, morre na praia
por não ter onde ancorar nesse mar de poesia

virginia finzetto

[in Antologia Digital Ser MulherArte, maio de 2020]

segunda-feira, 11 de maio de 2020

VÍRUS VIROU

um vírus do avesso no mundo 
deixou todos para dentro 
com a coroa de espinhos na cabeça 
e nada nas mãos

virginia finzetto

quinta-feira, 7 de maio de 2020

DO ANO SABÁTICO À QUARENTENA

resolvi que havia chegado a hora. nada de apenas um final de semana ou um mês. meu projeto foi pensado, articulado, um sonho que vinha sendo acalentado diariamente, planejado etapa por etapa, cronograma e recursos conquistados. queria um período largo para me dedicar a outras produções! eis que chega a primeira notícia da doença, que não ficaria localizada no país de origem, mas avançaria com rapidez para o leste e, passo a passo, para o oeste, aumentando o número de mortes, a princípio impessoal, o que não significa menos importante, depois de conhecidos distantes e personalidades públicas, até chegar nas américas, atingir meus compatriotas, vizinhos e, ontem, alguém muito próximo. não serei eu a dar a medida e o valor de cada vida nesse curso ceifador que se alastrou vertiginosamente pelo mundo. quando me dei conta do inevitável, não houve muito tempo de escolha, a não ser rever meus planos, cancelar o que era possível. impressionada com a relação entre o que eu quero e o tempo de resposta, revejo cada quadro desse curta para entender qual foi a falha em meu pedido. hoje aceito que não houve nenhuma, apenas que, como todos deveriam entender, as ações coletivas ao longo dos anos contaram com a massa crítica necessária para a realização dessa, digamos, mesmo inconsciente, súplica. todo profeta é sábio para não estipular datas e desperto o suficiente para descrever o desfecho com detalhes que impressionam a maioria que dorme. e um dia ele chega! concluí que ao meu ano sabático se sobrepôs um apelo mais forte, o de resposta em primeiro lugar ao planeta. durante o longo tempo em que as fronteiras foram sendo abertas, encurtando distâncias pelas redes virtuais e pelas redes físicas – terrestre, marítima e aérea – para comercializar quinquilharias e quimeras, o vírus estava sendo gestado nas sombras da ignorância de que seus atos um dia o dariam à luz. então veio o basta! fecha tudo! e, antes do meu particular, mais do que um desejo, uma ordem deste universo que sempre responde, todos fomos atendidos. eu quis apenas descansar para recarregar minhas forças, mas o efeito dessa onda gigante engoliu a minha vaga e a minha vez. nesse efeito bumerangue que me atingiu em cheio, troquei meu ano sabático por uma quarentena. fizemos por merecer! 

virginia finzetto

domingo, 26 de abril de 2020

PARAR PARA PARIR

era abril quando pressenti
que devia me fechar
era maio quando decidi
que minha vida era maior
era um ano de mudanças
que me abria para o amor
era um instante de abertura
que engendrava gravidez
era um ciclo de abundância
que se gestava em meu útero
era esse momento de fartura
que permitia nova colheita
era um tempo de ser mulher
que nascia para outra era


virginia finzetto

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Contos da quarentena

VIRGINIA MARIA FINZETTO – SÃO PAULO – BRASIL

INVISÍVEIS

Desde que cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres procrastinados.
A despensa completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do apartamento. Comparou as fronteiras que se fechavam ao redor do planeta, devido à pandemia de uma nova síndrome respiratória aguda grave, à cena em que o fornecimento de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante e escravizada na colônia do planeta marciano em Total Recall, um clássico do cinema.
Uma chave fecha a porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pelo surto. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?”
Enfim, reclusa e solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade, por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a que vivia lá fora, nos dois casos carregadas de um medo exacerbado e de restrições nas escolhas.
Se eu insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode ser que elas não me sirvam mais quando este perigo acabar. Será que encontraremos uma Terra mais inóspita que o Marte retratado no filme?
Fora, o medo do contágio; dentro, o medo de si mesma.
No entanto, algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia para confortar a si mesma.
 Agora que me sobra mais tempo, não sei mais o que fazer com ele.
Sem os condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a rotina anterior tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu talento não seja assim tão natural. Você tem medo que, sem o Google, seu vocabulário seja parco, sua memória seja curta e sua linguagem, pobre. Você tem medo de ser você!”.

Três semanas e o volume de mensagens repetitivas – de memes, de alertas, de autoajuda, de notícias falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo, outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:  
“Quem é você, Ana Monfort?”.
 − Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas, eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar realidade, mas ninguém está preparado como deveria para enfrentar a finitude anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a menor ideia, mas arriscou pensar que era bem provável que esse pacote de energia invisível ficasse no passado junto com a parte substancial da humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até aqui conhecido.

NÃO DESLIGUE OU DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.

Até o fechamento desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas, se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.