terça-feira, 21 de dezembro de 2021

UMA PEÇA!

Na década de 1990, criei uma peça publicitária que deveria veicular nas publicações infantis que eu editava. Era uma ideia curta ilustrada em três cenas de HQ. O personagem tinha que escolher entre os sabores morango ou chocolate (e eu, como boa libriana, imaginei ele em dúvida, jogando uma moeda pra cima, tirando assim sua responsabilidade sobre a escolha). Cara ou coroa? Aí a moeda caia em pé. E o que ele escolhe? Cena final: "Escolho os dois!" FIM (porque, lógico, a outra situação seria ele não escolher nenhum, e aí o dono do produto me matava). Essa lembrança me despertou o entendimento do significado da gula, que eu não havia pensado: gula não é querer comer muito e tudo, gula é querer tudo e ao mesmo tempo. E é bem provável que quem quer tudo ao mesmo tempo não queira nada, apenas uma congestão, do estômago ou da alma.

virginia finzetto

sábado, 18 de dezembro de 2021

IN DICIONÁRIO

Incrível o ar de gravidade e traição que acompanha a palavra procrastinar. Chego a ver bolas de chumbo presas ao pé da letra, como se eu estivesse prestes a ser protelada pelas costas.

virginia finzetto

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

ECLIPSADO

ECLIPSELUNAR
ECLIPSLUNA
ECLIPLUN
ECLILU
ECLL
EC
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EC
ECLL
ECLILU
ECLIPLUN
ECLIPSLUNA
ECLIPSELUNAR

Virginia Finzetto

domingo, 7 de novembro de 2021

FRASES FEITAS

"Deus tava lá quieto na dele."
mas, Virginia, você não pode escrever isso.
então, tá.
"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus."

virginia finzetto

DICIONÁRIO SINCERO, IN SÉRIE VERBETES

ARRELIA: uma releitura feita pela atmosfera.

BARRACÃO: grade de proteção em canis.

CADAFALSO: é o que mais se vê por aí.

DANADO: locais apropriados para a prática da natação.

ESPETACULAR: enfiar espetos em ânus domiciliar.

FUTURO: palavra bifocal; poucos a enxergam de perto e muitos não a enxergam nem de longe.

GALHOFA: adorno de cabeça que nunca saiu de moda.

HUMANAMENTE: um vício da raça, que não é privilégio feminino.

virginia finzetto

sábado, 6 de novembro de 2021

ENLUARADA

semicerrada,

a lua se prepara

para a nova

mirada

virginia finzetto

PIADINHAS CLÁSSICAS

dos filósofos da antiguidade, temos o torcedor de futebol italiano Parmênides e o pagodeiro Zenão.

no café da manhã do hotel serviram Sófocles, marca clássica de granola, e não restou um ésquilo sequer para mim. uma tragédia!

virginia finzetto

domingo, 31 de outubro de 2021

TRAÇAS

aquele amor sob os lençóis
tinha muitas histórias
de ácaros, peles mortas
e bichos de pé.

virginia finzetto

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

MICROCONTO DIA NACIONAL DO LIVRO

cheio de entrelinhas, o escritor tropeçou no texto e matou o protagonista no primeiro parágrafo.

virginia finzetto

DIA NACIONAL DO LIVRO

sem livros, você não saberia 
que o terror da vida é uma farsa, 
que a realidade é uma comédia 
e que tudo não passa de ficção.

virginia finzetto

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

PODIS CRÉDITO, BANCÁRIO!

-- e qual seria o motivo da requisição do empréstimo, senhor Juvenal?

-- pra fazê uma plantaçãozinha de maconha lá no sítio...

-- mas isso é ilegal!

-- ilegar coisa nenhuma... ô pessoar acha mó legar.

virginia finzetto

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

ADVINHAS E ESCOLHAS

leio minha sorte no casco de um cágado. à luz do dia, seus relevos revelam aos meus olhos linhas de um destino tortuoso, mas, à noite, acaricio o bicho como um pet e leio em braile apenas veredas felizes que eletrizam de esperança meu coração. nada tem autoridade para dar sentido a quem quer que seja sem seu consentimento, pois ninguém está dispensado da diversão que é fazer uma escolha. para os irresponsáveis, segue uma vida de adivinhações e lamentos, mas eu sigo escolhendo o que deve acontecer.

virginia finzetto

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

MICROCONTOS

minha cabeça é como um livro inédito: miolo misterioso ladeado por um par de orelhas.

temendo a morte, seu curriculum vitae passou em brancas laudas.

de boca em boca, seu fôlego acabou-se num suspiro.

virginia finzetto

ACONTECEU NO VELÓRIO

Ligaram de madrugada. Vestiu qualquer coisa sob o casaco, pegou a bolsa e chamou um táxi. Esquecera os óculos. Morta de sono, velou o cara errado até o raiar do dia.

virginia finzetto

microconto na revista Literartéria

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

LUTOS

tenho lembranças dos rituais da minha infância, do tempo em que os mortos eram velados em casa. recordo a dor da partida de um familiar ou de um vizinho e as lágrimas sinceras rolando nos rostos daquela gente querida em cada despedida que vivi. era uma época de compartilhar as alegrias, em conversas de portão e na calçada, e as tristezas, em volta de um caixão na sala, com a mesma presença desse espírito solidário. sei que, mais tarde, viciei em ler os obituários nos jornais imaginando como seria a vida, os sonhos e a causa da morte daqueles desconhecidos. e, a cada um se perguntando "por quê, eu?", minha despedida silenciosa "não se preocupe, vá em paz! agora, isso não importa mais", numa tentativa de dignificar cada ser humano como indivíduo neste mundo. cheguei até aqui para ver, agora, esse desencarne em baciada neste clima de "mal enterra um já morre outro", de milhares de desconhecidos protagonizando um luto em massa, em uma absurda estatística aferida e desejada por uma gente sem amor. peço perdão se hoje me falta ânimo e tempo necessários para manter meu ritual diário e particular, mas penso que se chegamos nessa banalização da morte é porque precisamos com urgência ressignificar a vida para nos devolver nossa defunta humanidade.

virginia finzetto

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

MERCÚRIO

se eu tropeço com as letras
e ralo a boca nas palavras
é Mercúrio que bate e sopra
remédio que 'arte' e cura

virginia finzetto

domingo, 19 de setembro de 2021

POETAS

tem poetas
músicos do ego
que falam de si
músicos da alma
que falam de dó
músicos da natureza
que falam de sol
músicos do mundo
que falam de lá
músicos da justiça
que falam de ré

tem poetas de todas as sílabas
em versos musicais
eu apenas invento repentes
versos que desafiam letras
a desafinar rimas

virginia finzetto

sábado, 4 de setembro de 2021

PRESSA E URGÊNCIA

correr, sem sair do lugar, é pressa. o que eu tenho é urgência. eu acaricio cada segundo como se ele fosse o primogênito, único, singular, revelando a mim seu instante efêmero sem nenhum apego ou vaidade. e com ele eu aprendo a ordem das importâncias e a equivalência das coisas que dialogam. e no segundo segundo já é novidade, enquanto eu vou acrescentando tudo como recheio ou cobertura, enfeitando de reminiscências as horas, os dias, os meses, os anos, as décadas. quiçá chegarei ao século. um bolo e tanto.


virginia finzetto

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

CONTAS A PAGAR

tento conciliar o dia
entre o que quero
e o que posso fazer,
mas a conta não fecha:
faltam horas,
não me sobram forças.
aritmética simples de
uma avançada vida.

virginia finzetto

terça-feira, 3 de agosto de 2021

AS OITO MARIAS

Meu conto foi incluído no projeto Relatos de Mulheres, idealizado pela Inominável Companhia de Teatro, com recursos do mecenato cultural da Prefeitura de Curitiba. As narrativas trazem sempre como figura principal histórias de personagens femininas.

Leitora: Lilyan de Souza
Texto: Virginia Finzetto
AS OITO MARIAS

terça-feira, 20 de julho de 2021

quinta-feira, 17 de junho de 2021

A PALAVRA TEM DIGNIDADE

palavras são como pássaros tentando pousar. pressentem sobressaltos e debandam ao menor susto. há dias, iscas não funcionam. palavras são exigentes no trato, não vivem de migalhas.


virginia finzetto

domingo, 13 de junho de 2021

SANTO ANTÔNIO

querido antônio, não fostes santo à toa. que idiotice a minha ficar te amolando por longos 12 anos. essa coisa de virar tua imagem de ponta-cabeça com objetivos tão falsos, chamar de simpatia a uma tortura dessas, atribuir à tua graça meu vexame de não ter sequer empatia com uma causa já sabida desde sempre como capricho no mau sentido, como uma birra. sabe, querido, ontem resolvi desenterrar todos os bonecos de gesso à tua imagem e algumas semelhanças. é que a cada ano eu adquiria um deles em lugares diferentes. hoje, com orgulho, exibo minha coleção sem ter repetido um sequer. penso que ela deva valer uma nota no mercado livre. o modelo 2018 nem cheguei a virá-lo. coloquei-o sobre a mesa e, juntos, tomamos esta decisão: 12 apóstolos, 12 meses, 12 anos, 12 signos, 12 casas do zodíaco... finalmente, percorri a roda, um ciclo inteiro, e sobrevivi feliz, sem me casar. obrigada, isso sim é que é milagre!

virginia finzetto

sexta-feira, 11 de junho de 2021

CONFIANÇA

lembro de quando li a primeira vez a palavra Confiança. eu tinha uns 5 anos e ela estava escrita como marca naquelas furgonetas de cor azul-marinho que abasteciam as vitrines das mercearias do bairro. tinha pé-de-moleque, maria-mole, suspiro e todas delícias meladas em lindos formatos, para atrair e viciar a criançada inocente trapaceando a ingenuidade dos adultos. atrelar certas qualidades como fé, credibilidade, esperança, firmeza, fidúcia, segurança e por aí vai a marcas, nesse caso, me induziu a comer quilos de veneno acreditando fazer bem à minha saúde. a tal da publicidade que serve ao capitalista, a tal da propaganda enganosa. mas quem seria honesto o suficiente para dar o nome de Cárie & Diabetes a sua empresa fabricante de doces, né? perdi a confiança!

virginia finzetto

domingo, 23 de maio de 2021

domingo, 2 de maio de 2021

LINGUAGEM

pois ainda não se faz print de uma emoção nem áudio da entonação de voz em uma postagem. mesmo assim temos uma linguagem que permite alcançar os agudos e os graves de qualquer situação. se a poesia entra na prosa, o recado é flecha certeira. é preciso, além da técnica, o acréscimo da intenção, o conhecimento do alvo e a humildade da obediência.

virginia finzetto

AMNÉSIA

enquanto dormimos acordados, tudo trabalha em silêncio, dos amores às dores. não podemos controlar nada que se faz à pouca luz da penumbra. aceitamos o que não vemos e brigamos pelo que vemos, na tentativa de exercer algum poder de interferência, alguma mudança no esquema que não temos acesso, porque desconhecemos como foi engendrado. ou aceitamos que não mudamos nada ou aceitamos que para mudar ou não um evento é preciso ter consciência do processo em que ele foi gerado. nem tudo, eu diria que a maior parte, pode ser mudado pela ação do pensamento positivo ou pela luta, seja ela pacífica ou armada, porque não estamos treinados à altura para fazer isso. apenas nos enganamos e somos vítimas de uma coisa chamada de esquecimento.

virginia finzetto

quarta-feira, 21 de abril de 2021

GENTE

é uma banda de gente que canta
é um bando de gente que escreve
é uma bunda de gente que dança
é um bonde de gente que aplaude

virginia finzetto

AUSCULTE-SE

adoeço por excesso de opiniões. alterno inocular o veneno e o antídoto nesse universo de farta distribuição gratuita de palavras profanas. sofro de uma labirintite crônica por não poder descansar na certeza de nenhum dos lados, se não sou eu a me auscultar.

virginia finzetto

TREMORES

estou pra lhe dizer que este tremor pode não ser normal para você, mas pra mim faz parte de um tempo que vem lá dos ancestrais, quando se escondiam nas cavernas com medo dos predadores, sem noção de cada amanhecer. estou pra lhe dizer que foram não sei quantas civilizações até que eu pudesse aparecer sobre a superfície da terra, e ainda compartilhar um sentimento tal e qual aquele menino de olhos mais arregalados armazenava entre os pulmões sem que ninguém pudesse lhe dar uma explicação sobre isso. estou pra lhe dizer que nenhuma explicação hoje também não elimina o tremor que sinto como castigo de um tempo infinito.

virginia finzetto

terça-feira, 20 de abril de 2021

domingo, 18 de abril de 2021

PRONOMINAL

era pessoa de palavra
não da poesia
de prosa crônica
da fantasia
era pessoa de rima
das farpas e da ironia
de si, cômica
ria

virginia finzetto 

domingo, 4 de abril de 2021

LIBIDO

namora...
exala tesão demoníaco
e aí noiva...
cheira a channel número 5
depois casa...
transpira cândida e amoníaco

virginia finzetto


DIÁRIO DE UMA PROTAGONISTA MILENAR

foi assim: deus estava em seu estúdio brincando com suas canetinhas coloridas desenhando um planeta lindo, ao qual chamou de paraíso terrestre. nisso, o ambiente foi invadido pelos arcanjos, que resolveram pedir licença pra dar uns pitacos aqui e ali. deus, em sua grandiosa bondade, como é e sempre será muito democrático na escuta, ouviu a todos com paciência e depois fez o que bem entendeu. desenhou todos os personagens que quis, em sua máxima perfeição. eram páginas e páginas que mostravam todo o seu esplendor criativo e onde reinava o supremo amor e a graça infinita. aí vieram os anjinhos batendo suas asinhas luminosas para que o mestre pudesse trabalhar no escuro. um deles, lúcifer, das asas de purpurina, muito desastrado, acabou derramando o jarro de água benta sobre o gibi divino. deus, ainda em sua enorme paciência, mas sem abrir mão do pulso rigoroso, o expulsou de seu reino celeste, condenando-o a viver como antagonista no paraíso destruído pelo líquido entornado. depois disso, o criador foi tirar uma soneca para descansar [já era o sétimo dia!] e largou sua criação ao deus dará.

virginia finzetto 

RESSURREIÇÃO

pele flácida
às margens deste corpo
é versátil capa
do veículo que me conduz
o nariz cresce
a bunda cai
ó carne idolatrada
pela mídia que te ilude
não sobrará
pátria sobre pátria
da terra que é solo
ao qual retornarei

virginia finzetto

domingo, 21 de março de 2021

VESTIDO DE NOIVA

quando eu me casar,

vou reservar o domingo

e a paulista inteirinha pra mim

três mil metros de tule esticado

segurado pela multidão

quero ver quem pode comigo

enquanto dou o sim no paraíso

meu rabo dá na consolação

virginia finzetto

quarta-feira, 17 de março de 2021

O CONTRABANDO

Em 1996, quando estive em Oaxaca, no México, eu não pude evitar uma paixão à primeira vista pelo chuchu peludo que vi no mercado local. O legume era pequeno, delicado e revestido por uma penugem, um cabelinho verde macio. Não tive dúvidas. Trouxe um exemplar deles comigo e o plantei no sítio.
Ele vingou... e se vingou.
Como uma praga, o bicho se espalhou e deu mais do que chuchu na serra. Só que, para minha surpresa, aqui em solo brasileiro os frutos nasceram bem maiores e com uma crosta revestida de espinhos duros como os de ouriços do mar, sem exagero. Impossível apanhá-los sem vestir luvas de raspa.
Levei vários exemplares para distribuir para os amigos na redação. Sim, fui xingada, muito...
Tá, antes que alguém me culpe ou denuncie, eu confesso que hoje não faria uma barbaridade dessas.
Senti na pele ferida das mãos, espetada várias vezes pelas hastes criminosas, e na alma, a verdadeira maldição de Montezuma!

virginia fInzetto

quinta-feira, 4 de março de 2021

FALTAS

e agora me vem essa falta de fome
quando vejo cadáveres de bichos se mexendo no réchaud
e sinto o amargo entre a minha língua e o meu palato
do fel tóxico de suas lembranças antes do assassinato

e agora me vem essa falta de sono
quando meu corpo cansado não acompanha mais minhas ideias
e os pensamentos misturados com os números e as dores
de muitos cadáveres humanos que me mantêm acordada

e agora me vem essa falta de vontade de sexo
quando antes tudo era falta de fome e falta de sono
mas sustentadas pelos afagos dos dedos, da língua, do tato
em minha vagina retesada do meu corpo entregue

agora o que sobra é uma vida de faltas
 
virginia finzetto

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

ESCAMBO

troco sua fé
pelas minhas mentiras
troco seu silêncio
pelas minhas torturas
troco sua fome
pelas minhas riquezas
troco sua crença
pelas minhas balas
troco seu picadeiro
pelo meu paraíso
troco sua liberdade
pela minha ditadura

virginia finzetto

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

CASAMENTO

primeiro me lubrificou inteira
depois como um hacker
entrou no meu coração
e roubou meus sentimentos secretos
enquanto eu dormia
vendeu no mercado clandestino meus segredos,
meus signos, minhas senhas, meu sono
invadiu minha privacidade,
mudou meu nome
fodeu comigo e com minha vida
e, sem protocolo algum,
ainda negou o divórcio
pirata ordinário!
virginia finzetto

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

RIP

para uma pessoa cansada, 
saber que depois da morte há vida eterna, 
já começa a dar tremedeira... 

virginia finzetto