Por
Virginia Finzetto
Em 1995 estreava na
telona o filme Disclosure, do diretor norte-americano Barry Levinson, baseado no livro de mesmo título do escritor Michael Crichton. Embora classificado como suspense, muitos se
enganaram com o sex appeal do casal
protagonista nas imagens de divulgação da estreia e no apelo da tradução do
título do filme no Brasil.
Mas as cenas picantes –
poucas – são meras coadjuvantes, nesse caso. Depois de tanto tempo não é mais spoiler lembrar que o tema central da
história não fala de romance, cantada ou sedução. Trata-se de um caso de
assédio sexual em uma hipotética empresa de informática na costa leste dos EUA.
Para deixar claro que
assédio nada tem a ver com sexo ou ser uma prática exclusiva dos homens, a
escolha da figura feminina para representar esse papel foi bem inteligente. Jovem,
bela e sexy mulher, a executiva Meredith Johnson (Demi Moore) usa de seu poder
para forçar Tom Sanders (Michael Douglas), com quem ela já havia se envolvido
no passado, a manter relações sexuais com ela. Disputando o mesmo cargo pelo qual Johnson
acabou ocupando, Sanders – casado e pai de família – recusa-se a entrar no jogo
de sua atual chefe. Para se vingar, ela ameaça destruir a carreira dele como
diretor de produção na empresa.
O episódio vai parar na
presidência, que tenta manipular um acordo entre os envolvidos, para abafar o
caso e não prejudicar as negociações comerciais de sua fusão em andamento. Mas
Sanders, recusando-se a aceitar a injusta pecha de tarado, busca orientação
para provar sua inocência. O caso se espalha internamente, extrapola os limites
da empresa e vai parar na justiça.
Da fantasia à
realidade, da tela aos estúdios, eis que assistimos no final do ano passado à onda
de denúncias envolvendo o diretor de cinema norte-americano Harvey Weinstein.
Contra ele pesa um número considerável de acusações de assédio sexual e estupro
por atrizes do porte de Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow, para citar apenas dois
exemplos.
Vir a público uma
história de assédio sexual, guardada em segredo durante anos, encorajou a
abertura da caixa de Pandora. E, como efeito dominó, outros famosos, denunciados
por abuso de poder, desfilaram no rastro dos holofotes revelando um subterrâneo
nada romântico nos bastidores de Hollywood.
O que não se esperava
nessa programação de baixa fidelidade e alta audiência seria a interferência de
um elemento incompatível, uma provocação batendo de frente à movediça crise
revelada pela mídia.
Do outro lado do
Atlântico, misturando os fatos como quem prepara nitroglicerina com polpa de celulose, o
Jornal Le Monde publica uma carta-aberta, elaborada por cem ilustres mulheres
francesas, em resposta ao espocar das denúncias feitas pelas, por elas chamadas,
“feministas norte-americanas”.
Entre as signatárias do
manifesto estão celebridades – atrizes, escritoras, pesquisadoras e jornalistas
– como a atriz Catherine Deneuve – reivindicando o direito de “‘defender’ a ‘liberdade’ dos homens de
‘importunar’ e de ‘se opor’ à ‘onda de denúncias’ que surgiu após o escândalo
Weinstein” e alegando que “o
estupro é um crime, mas cortejar de forma insistente ou desajeitada não é um
delito, assim como o galanteio não é uma agressão machista”.
E assim, misturando
alhos com bugalhos, após a explosão dessa carta-bomba, instaura-se uma confusão
na mídia e nas redes sociais. Grupos se digladiando em discussões sem pé nem
cabeça, tomando partido de um ou de outro lado... de dois assuntos completamente
distintos colocados na mesma balança de julgamento.
Será necessário desenhar
que assédio, independentemente do gênero humano de quem o pratica, não diz
respeito a sexo, cortejo, cantada, mas sim a poder?
Voltemos a cena do
filme Disclosure, na qual Catherine Alvarez (Roma
Maffia), advogada de Sanders, interpela sua oponente após ouvirem
a fita gravada com as provas da inocência de seu cliente:
– Srta Johnson,
pode definir o que é sexo consensual?
– Sexo
consensual é quando as duas partes concordam em participar.
– Quantas vezes
ouviu o Sr Sanders dizer não, Srta Johnson?
– Não sei, eu
estava mais preocupada em resolver o serviço.
– 31 vezes. Não quer dizer não. Não é o que as mulheres dizem? Os homens merecem menos? O fato
é que você controlou o encontro, marcou a hora, trancou a porta, pediu o
serviço e aí ficou furiosa quando ele não a atendeu. Decidiu se vingar. A única
coisa que prova é que uma mulher no poder pode ser tão abusada quanto um homem.
Uma coisa é cortejo,
outra totalmente diferente é assédio. São distintos. Não se comparam e de
maneira alguma são excludentes. Pode-se ser a favor do cortejo e contra o assédio,
mas não se deveria questionar o justo rechaço ao assédio com argumentos que
defenderiam apenas o cortejo.
Ou poderíamos
considerar falta de tolerância da parte das várias atrizes que tiveram de
arrastar móveis para a porta de um quarto de hotel na tentativa de impedir a
insistência alfa dos galanteios do senhor Weinstein?
Em nome desse
discernimento é que precisamos falar sobre Deneuve.
Assédio é crime. Crianças,
jovens e adultos, independentemente do gênero, qualquer pessoa pode sofrer esse
tipo de abuso de poder. Fazer uma denúncia pública, nesse caso, exige que a
vítima reúna muita coragem para superar o trauma e enfrentar todo o tipo de constrangimento quando os fatos se
tornarem públicos. Além disso, deve reunir provas suficientes para conseguir que
o criminoso seja levado à justiça.
Uma tarefa nada fácil, pois o autor do abuso
tem poder suficiente para ameaçar e obrigar sua vítima ao silêncio e fazê-la desistir,
já que ninguém acreditaria em sua história.
Portanto, não se pode
comparar assédio com casos de paqueras insistentes, em que parte-se do
princípio que até estas devem ter um limite. Em nome do apelo a "uma liberdade de importunar,
indispensável à liberdade sexual" para os homens, teria sido justo
incluir o apoio à liberdade de qualquer pessoa recusar um envolvimento.
Madame Deneuve, com o
devido respeito pela sua brilhante carreira de atriz, mas, mesmo depois de todo
esclarecimento sobre pontos que obviamente não haviam ficado explícitos, como
seu pedido de desculpas às vítimas de assédio e de estupro, se a sua intenção ao
assinar o manifesto fosse dourar a flecha do cupido, creio que errou feio o
alvo.
À luz desse “eclipse oculto”,
só invocando Caetano Veloso: “como se o coração tivesse antes que optar entre o
inseto e o inseticida”.
1 – A nitroglicerina, substância líquida instável, em pequenas proporções, é um vasodilatador que pode salvar vidas, mas, quando em quantidade maior misturada com polpa de celulose, resulta na dinamite. Em condições garantidas, cada um desses elementos separados não oferece perigo de explosão.