Naquele dia, as palavras adquiriram outra expressão. Cansadas de seu
significado, de ouvirem seu santo nome em vão, faltando partes, designando
equívocos, elas promoveram uma revolução liderada pelos verbos, a classe que sempre
se destacava pela ação. Nesse motim, eis que surge uma questão de ordem. No
caso, de ordem existencial, encabeçada pelo pequeno, mas representativo, grupo dos
pronomes. Entretanto, quem conseguia dar conta de resolver o problema do EU, que já passava da casa
dos 7 bilhões de reivindicados? Mesmo com o apoio irrestrito do NÓS, parceiro único na primeira
pessoa, agraciado com o título de “o senhor da síntese”, o EU - em si mesmo e a nível dele próprio - se sentia injustiçado, dividido, despersonalizado. Nesse
momento, todas as palavras se olharam entre si, apavoradas. Uma desistência daquele
porte colocaria tudo a perder. Lidar com as questões externas tendo um problemão
de ordem interna como esse do tal de EU?
Enfim, as reuniões por categoria promoveram um rebuliço no dicionário, um
trança-trança, um mexe-mexe. Algumas páginas ficaram tão atoladas de palavras,
que elas precisaram se ajustar, até se espremerem em corpo, eliminarem os espaçamentos
entre linhas e entre letras. Enquanto outras páginas, totalmente vazias, arejadas, tornaram-se
propícias a áreas de lazer, as prediletas de certos substantivos que conseguiam escapulir do rebu, como amor, planta,
animal e criança, só alguns exemplos.
Porém, a despeito de
toda e qualquer oração, havia a galera insubordinada, formada pelas palavras profanas
que não estavam nem aí com o sentido sacro da conversa ou o rumo do movimento. Variáveis
e volúveis. Não eram palavras de palavra! Eram rebeldes provenientes de todas
as classes, e formavam um grupo à parte.
Entre brincadeiras e jogos
de palavras, elas assumiam qualquer papel. E assim foi que, tomando a dupla
central vazia do dicionário, resolveram promover um grande baile, uma dança de
salão. Aos poucos, os pares foram se formando sem preconceito de classe, gênero
ou compatibilidade fonética. Alguns casais eram muito afim entre si, outros nem
tanto. Apenas atraídas pelo desprendimento da diversão, juntaram-se
“comigo-ninguém-pode-pica-pau”, “vez-passada”, “havia-dado” “moça-fada”,
“abunda-pita”, “escudo-humano” “Itaipu-tinha”... E as parelhas debochadas iam deslizando pelas folhas
em branco, ao som de gritinhos, risos e aplausos. Um espetáculo singular nunca
antes escrito.
Tanta baderna acabou chamando a atenção do plenário organizado na página
vizinha, formado pela sisuda classe inflexível. Rapidamente, algumas
representantes dessas invariáveis vieram tomar satisfação. Dominadas pela rigidez,
atropelando-se em suas próprias palavras, elas partiram pra cima das que fugiam
à regra. De repente, como iluminuras, as beiradas da dupla de folhas em branco foram
sendo invadidas por dezenas delas querendo baixar normas e atos de exceção para
implantar a Nova Ordem Mundial da gramática!
Advérbios e preposições por todos os lados
faziam um cordão de isolamento para conter as folionas rebeldes, enquanto as
conjunções sempre atentas ao apelo das interjeições - Calma! Atenção! Socorro!
- arriscavam um meio de campo, uma negociação entre o senão e o talvez.
O cerco ia se fechando quando rapidamente, pelo
rodapé, sobe um exército de monossílabas em fila feito formigas cruzando as
páginas, acompanhado por dó ré mi fá sol lá si, cordão musical pra puxar a marchinha
de protesto. As tônicas cantavam em alvoroço enquanto as átonas batiam palmas
para marcar o contratempo com palavras de ordem em tom de malícia. Fazendo jus ao
tamanho, o recado foi curto e grosso: sol dó si mi ré lá!
Eram as palavrinhas ‘dando’ apoio aos palavrões.
No final do embate, 12 apóstrofes, entre
oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas, foram responsabilizadas pelo paroxismo
e capturadas pelo caça-palavras.
Encontre, em qualquer sentido ou direção,
cada uma das presas no quadro de letras ao lado e, se quiser, escreva o nome delas
no campo dos comentários.
virginia finzetto