domingo, 6 de março de 2016

SINTONIA

abaixou os olhos, mas continuou a ouvir cada letra atravessando o túnel auditivo com pisos firmes e ritmados até que, ao final do pavilhão, se unissem para formar a palavra que fazia sentido. compreendeu uma a uma das palavras em separado. depois a ordem de cada palavra na frase. e, por fim, enquanto uma lágrima quente escorria até a metade de sua face, abraçou a mensagem de viver a dor do outro como se fosse sua.

virginia finzetto 

quinta-feira, 3 de março de 2016

HIROITO DE MORAES JOANIDES

Eu conheci Hiroito de Moraes Joanides (*Morretes 1936 +São Paulo1992) nos finais dos anos 1970, em nosso circuito da madrugada pelos bares e cinemas, entre o Belas Artes, Riviera e o Ponto Chic do Largo Paissandu, todo final de semana, para vender de mão em mão o tabloide de esquerda Movimento. O Rei da Boca do Lixo, como era conhecido, sempre aparecia com sua malinha cheia de livros, o Boca do Lixo, título de sua autoria, que viraria depois o filme "Boca”, do cineasta Flávio Frederico, em 2010. Veio-me hoje a imagem dele, baixinho, simples, com aqueles óculos com lentes de fundo de garrafa, ex-bandido e simpatizante da nossa tchurma de estudantes revolucionários. Bons tempos em que a gente só tinha medo da repressão. 

virginia finzetto

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

DECOR

Então era ditadura braba, e eu ainda uma criança. Havia um autoritarismo ferrado, do hino nacional, à entrada da escola, à rigidez da maioria dos mestres em sala de aula. E um professor de Português, desgraçado, que seguiu tudo ao pé da letra, queria que eu decorasse um poema imenso e difícil. E era para eu declamar para os colegas, valendo nota. Travei. Travei para sempre. Nunca mais consegui decorar nada, nem textos nem fórmulas nem datas nem sequer o que eu escrevi durante toda minha vida. Passei a odiar o tal homem, a odiar o tal poema, a odiar o tal poeta. Hoje, por acaso, estou aqui com I-Juca Pirama na minha frente, num esforço grande para chegar até o fim das estrofes bem construídas. Talvez assim eu possa me curar e fazer as pazes com o Gonçalves, esse grande escritor jornalista maranhense folclorista indianista romântico nacionalista [e que veio me confessar, ao pé do ouvido, que odiou o que aquele carrasco fez comigo]. 

virginia finzetto

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O ROMANCE DE DEUS

dizer que este mundo é um ovo é uma redundância. nunca achei mesmo que fosse uma esfera com todos os raios, que o partam de onde partam, ó raios, todos certinhos e idênticos conectando a periferia ao centro. mas é que esse ovo é de lagartixa, ou até menor do que imaginamos. as conexões entre fatos e pessoas formando essa trama me diz que o acaso é outro nome de um romance já escrito por deus ou é tanta coincidência do diabo que até deus se surpreende. eu poderia estar aqui me sentindo usada pelo satã, mas prefiro acreditar que o caso foi do acaso, e que este, por sua vez, já é obra de uma das tremendas coincidências criadas por deus. 

virginia finzetto

DOSES E DOSES

eu acredito na homeopatia, não porque sou crente, mas porque vejo resultados em mim na maneira como ela cura algumas doenças do corpo, da alma e do espírito, não necessariamente nessa ordem. porém, na área dos relacionamentos, as verdades que nos chegam em pequenas doses, de cicuta e de veneno de cobra, provocam efeitos colaterais dolorosos em meus corpos, e, em alguns casos, definitivos, como a quebra de confiança. está certo que a luz da verdade absoluta pode nos cegar, é preciso ir com cuidado no percurso do caminho espiritual. mas confundir isso com a ordinariedade mundana, dúbia por natureza, a perplexidade se traduz na minha cara de pamonha. desilusão é boa, mas eu detesto quando dizem que minha avó subiu no telhado. me mate de dor de uma vez, porque o sofrimento é intenso, mas tem seu mérito pela magnitude. nesse caso, quero alopatia na veia. 

virginia finzetto

sábado, 27 de fevereiro de 2016

ESPIANDO A ALMA ALHEIA


Parecia ser um jantar informal. Uma conversa entre um homem e uma mulher. Fiquei observando, enquanto bebericava aguardando meu pedido, como ele a triturava com os olhos, enquanto suas mãos dobravam lentamente a toalha de papel fazendo um movimento de fole de sanfona em direção a ela. De onde eu estava não era possível ouvir a conversa. Como se eu estivesse vendo um filme de cinema mudo, comecei a legendar mentalmente a cena: [ela] tá bom, você quer ouvir mesmo a verdade? [ele] sim, foi pra isso que viemos aqui conversar. [ela] eu não transei com ele (silêncio profundo) ok, transei... mas não foi bom... (pausa rápida) tá, eu transei sim e foi ótimo! [ele] sua (primeira dobra) filha (segunda dobra) de (terceira dobra) uma (quarta dobra) grandessíssima (quinta dobra) ... (sexta dobra)... FIM (sétima dobra). Despertei com a voz do garçom perguntando "posso servi-la?", enquanto flagrava o tal casal unir as mãos sobre a mesa e tascar um longo beijo. Tsc, já não se faz mais realidade como antigamente, pensei. 

virginia finzetto