segunda-feira, 7 de março de 2016

FÊNIX

estranho seria se não houvesse a própria morte para os que estão no topo da cadeia alimentar. até estes serão comidos, mesmo que tardiamente, pelos vermes ou urubus no cumprimento de suas não condecoradas, porém honradas, tarefas de saneadores básicos da natureza. mas não a mitológica ave fênix, que se auto crema e ressuscita de suas cinzas, pois a ela coube a sentença de nunca perecer para sempre, engatando um no outro longos períodos de vida. ou seremos mortos ou seremos ressuscitados ou ambos em diferentes planos de realidade. mas não ter ninguém para me comer exatamente agora é o fim da picada. 

virginia finzetto

domingo, 6 de março de 2016

SINTONIA

abaixou os olhos, mas continuou a ouvir cada letra atravessando o túnel auditivo com pisos firmes e ritmados até que, ao final do pavilhão, se unissem para formar a palavra que fazia sentido. compreendeu uma a uma das palavras em separado. depois a ordem de cada palavra na frase. e, por fim, enquanto uma lágrima quente escorria até a metade de sua face, abraçou a mensagem de viver a dor do outro como se fosse sua.

virginia finzetto 

quinta-feira, 3 de março de 2016

HIROITO DE MORAES JOANIDES

Eu conheci Hiroito de Moraes Joanides (*Morretes 1936 +São Paulo1992) nos finais dos anos 1970, em nosso circuito da madrugada pelos bares e cinemas, entre o Belas Artes, Riviera e o Ponto Chic do Largo Paissandu, todo final de semana, para vender de mão em mão o tabloide de esquerda Movimento. O Rei da Boca do Lixo, como era conhecido, sempre aparecia com sua malinha cheia de livros, o Boca do Lixo, título de sua autoria, que viraria depois o filme "Boca”, do cineasta Flávio Frederico, em 2010. Veio-me hoje a imagem dele, baixinho, simples, com aqueles óculos com lentes de fundo de garrafa, ex-bandido e simpatizante da nossa tchurma de estudantes revolucionários. Bons tempos em que a gente só tinha medo da repressão. 

virginia finzetto

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

DECOR

Então era ditadura braba, e eu ainda uma criança. Havia um autoritarismo ferrado, do hino nacional, à entrada da escola, à rigidez da maioria dos mestres em sala de aula. E um professor de Português, desgraçado, que seguiu tudo ao pé da letra, queria que eu decorasse um poema imenso e difícil. E era para eu declamar para os colegas, valendo nota. Travei. Travei para sempre. Nunca mais consegui decorar nada, nem textos nem fórmulas nem datas nem sequer o que eu escrevi durante toda minha vida. Passei a odiar o tal homem, a odiar o tal poema, a odiar o tal poeta. Hoje, por acaso, estou aqui com I-Juca Pirama na minha frente, num esforço grande para chegar até o fim das estrofes bem construídas. Talvez assim eu possa me curar e fazer as pazes com o Gonçalves, esse grande escritor jornalista maranhense folclorista indianista romântico nacionalista [e que veio me confessar, ao pé do ouvido, que odiou o que aquele carrasco fez comigo]. 

virginia finzetto

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O ROMANCE DE DEUS

dizer que este mundo é um ovo é uma redundância. nunca achei mesmo que fosse uma esfera com todos os raios, que o partam de onde partam, ó raios, todos certinhos e idênticos conectando a periferia ao centro. mas é que esse ovo é de lagartixa, ou até menor do que imaginamos. as conexões entre fatos e pessoas formando essa trama me diz que o acaso é outro nome de um romance já escrito por deus ou é tanta coincidência do diabo que até deus se surpreende. eu poderia estar aqui me sentindo usada pelo satã, mas prefiro acreditar que o caso foi do acaso, e que este, por sua vez, já é obra de uma das tremendas coincidências criadas por deus. 

virginia finzetto

DOSES E DOSES

eu acredito na homeopatia, não porque sou crente, mas porque vejo resultados em mim na maneira como ela cura algumas doenças do corpo, da alma e do espírito, não necessariamente nessa ordem. porém, na área dos relacionamentos, as verdades que nos chegam em pequenas doses, de cicuta e de veneno de cobra, provocam efeitos colaterais dolorosos em meus corpos, e, em alguns casos, definitivos, como a quebra de confiança. está certo que a luz da verdade absoluta pode nos cegar, é preciso ir com cuidado no percurso do caminho espiritual. mas confundir isso com a ordinariedade mundana, dúbia por natureza, a perplexidade se traduz na minha cara de pamonha. desilusão é boa, mas eu detesto quando dizem que minha avó subiu no telhado. me mate de dor de uma vez, porque o sofrimento é intenso, mas tem seu mérito pela magnitude. nesse caso, quero alopatia na veia. 

virginia finzetto

sábado, 27 de fevereiro de 2016

ESPIANDO A ALMA ALHEIA


Parecia ser um jantar informal. Uma conversa entre um homem e uma mulher. Fiquei observando, enquanto bebericava aguardando meu pedido, como ele a triturava com os olhos, enquanto suas mãos dobravam lentamente a toalha de papel fazendo um movimento de fole de sanfona em direção a ela. De onde eu estava não era possível ouvir a conversa. Como se eu estivesse vendo um filme de cinema mudo, comecei a legendar mentalmente a cena: [ela] tá bom, você quer ouvir mesmo a verdade? [ele] sim, foi pra isso que viemos aqui conversar. [ela] eu não transei com ele (silêncio profundo) ok, transei... mas não foi bom... (pausa rápida) tá, eu transei sim e foi ótimo! [ele] sua (primeira dobra) filha (segunda dobra) de (terceira dobra) uma (quarta dobra) grandessíssima (quinta dobra) ... (sexta dobra)... FIM (sétima dobra). Despertei com a voz do garçom perguntando "posso servi-la?", enquanto flagrava o tal casal unir as mãos sobre a mesa e tascar um longo beijo. Tsc, já não se faz mais realidade como antigamente, pensei. 

virginia finzetto