quinta-feira, 4 de agosto de 2016

MUITAS EM MIM

a verdade é que dentro de mim eu sou o que eu quiser e ninguém fica sabendo. mas também reúno personagens que às vezes me escapam. um deles luta eternamente pela união de todos os outros, enquanto aquele em especial me trai. quem olha diz que tá tudo bem, porque não deve ser muito diferente com ninguém. interessante é observar personagens com o mesmo script de amor ou de ódio andando por aí, se apaixonando ou brigando.

virginia finzetto

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

DEUS TEM MEU PRONTUÁRIO

Deus, toda pergunta 
aguarda uma resposta...
que esta venha em boa hora
antes de minha morte, amém!
como aviso ou um sinal
telepático, explícito ou cifrado
deste planeta ou do além
em papel branco ou pautado
telegrama, carta, e-mail
pronta entrega, envelope vai e vem
lacrado, com selo e timbrado
caixa postal, posta-restante
embaixo da porta ou sobre a estante
Deus, recupere a minha história, 
por favor, arrume um meio!
impresso ou gravado
por telefone ou por correio 
um bilhete ou um manual
um post-it no mural
manchete de jornal, rádio, tevê 
livro, revista, encarte
no pen drive ou devedê
Deus, refresque minha memória,
por favor, mande um resgate!
minha ficha biográfica
tudo tridimensional
ressonância magnética
ultrassom, tomografia 
uma imagem sideral
devem estar no prontuário
em ordem alfabética 
com prefácio e epílogo
Deus, por caridade, 
envie uma palavra, afinal:
foi por livre arbítrio 
que escolhi desse catálogo
esta prisão condicional?

virginia finzetto

["Deus tem meu prontuário", poema escolhido para compor a antologia poética do 16° Concurso de Poesias da UFSJ (MG)]

domingo, 24 de julho de 2016

VINGARÃO

eu penso que a humanidade está sofrendo de uma doença autoimune subterrânea que foi se desenvolvendo lentamente, cujos efeitos, hoje, parecem ser desproporcionais, pois todo estrago feito na surdina, que veio acontecendo durante anos, fez parte do estágio de sua própria negação. e agora, que tudo está evidente, nos assusta saber que estamos com os dias contados. e no entanto os desencadeadores ainda tentam dourar todo o mal banalizado com promessas ilusórias e prostituição. apenas os sãos resistem. pequenas e dispersas células despertas, ainda não contaminadas, porém isoladas em impotência, preservam o saber da semente e do vapor, que vingarão em água e promessa de vida carregados que serão para terras férteis. a maioria padece, e ainda dorme.

virginia finzetto

quarta-feira, 20 de julho de 2016

FILHA DA FRUTA

faz o tipo laranja, mas é igual pinha, essa annona squamosa por fora e suculenta por dentro a ofertar areinha ‘al dente’ a quem lhe seduz.  gostosa, mas que difícil é comê-la.  caprichosa, essa enrugada. seu mel dá inveja a varejeiras oferecidas que de soslaio captam zangões a rondar essa rainha, que de tonta não tem nada. serpente de sementes, esse verde é só disfarce, que veneno mesmo ela não tem.  alma sábia igual panela de ferro tangida a fogo por anos para dar bons guloseimas.  feiticeira a consolar carente hipócrita que finge manter ‘lar [não] doce lar’.  e ainda ouve de meretriz a ‘sua filha da puta’ de boca que deveria morder a própria língua toda vez que injuriasse a planta de cuja boa raiz herdou tão majestosa fruta. 

virginia finzetto

quinta-feira, 23 de junho de 2016

CUPIDO

se entregou desprotegida e foi alvo da flecha sem camisinha daquele cupido estúpido que lhe acertou em cheio. agora grávida de ilusão, acorda aturdida tentando recolher meias, sutiã, coração e calcinha, e mais um monte de lembranças espalhadas pelo chão, enquanto aguarda nove luas, nove baforadas de beise, que é o tempo que dura esse mundo etéreo, até a próxima flertada. 

virginia finzetto

quarta-feira, 22 de junho de 2016

TRAVESSIA

difíceis são os dias ensolarados se dentro de mim só chove. eu agora combino com o triste cinzento que cobre a janela e meus olhos, e o peito apertado por essa coisa que tento definir. por que exclamamos ou reclamamos se nada poderá mudar qualquer travessia? serão tão necessárias as anotações do barqueiro em sua fase malabarista tentando equilibrar sentimentos em poesia enquanto palavras alheias a tudo apenas aguardam ocupar um lugar? eu sei que hoje é só mais um dia que me ocuparei de rotinas requentadas e quimeras acalentadas. não é minha imagem inerte no lago que me fascina, mas a voz do retorno do eco que foi lá bater na sua montanha.

virginia finzetto

terça-feira, 21 de junho de 2016

BODAS DE PRATA

Hoje, Nel, se você aqui estivesse, poderíamos nos lembrar de quando decidimos oficializar nossa união. Não era necessário, a gente já tinha resolvido ficar juntos, o Arthur estava a caminho e a gente se amava. Aí você me fez sair da Lapa para irmos assinar nosso contrato no civil lá no cartório de Santo Amaro, porque era mais barato. Eu fui trabalhar de manhã e disse bem alto, na redação: pessoal, eu vou "ali", casar, e já volto! Eu nunca perdi meu bom humor. E assim durou nossa união, que hoje estaria completando bodas de prata, mesmo que a gente não tivesse se separado pelo motivo pelo qual você me deixou. Foi a única vez que me casei no papel, e não me arrependo de nada. Nel, era só para lembrar que eu nunca me esqueci de você. 

virginia finzetto