domingo, 25 de março de 2018

CARAVANA

não  arranco de  mim nenhuma poesia 
sou hospedaria de palavras beduínas
que se  importam  só com o caminhar
se encontram  o oásis de um deserto
espalham ali  sementes  de acasos e
sem pressa sabem  as 36 luas contar


virginia finzetto

domingo, 18 de março de 2018

POR QUE ESTÁS TÃO TRISTE?


não foi a camélia
foi Marielle 
que levou quatro tiros
e depois morreu
ela é que era mulher
de verdade
não foi Amélia
e hoje
não é outro dia...


virginia finzetto

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

RECADO DE BATOM

antes que o movimento da casa de cômodos aumentasse com a chegada dos novos hóspedes, Ana decidira escrever rapidamente um recado. no meio daquela algazarra, pensou qual seria o melhor lugar para colocar visível a mensagem. desistiu. teria que escrever um cartaz, do contrário o bilhete poderia ser confundido com tantos outros papeizinhos espalhados e misturados a contas vencidas, propagandas de pizzaria e dedetização, recibos da farmácia, lixo... a geladeira estava coberta de ímãs de toda espécie. Arminda perdera ali o horário da medicação e acabou esquecendo por dias de ingerir o comprimido da pressão. internada, não resistiu. então Ana resolveu pegar seu batom vermelho, já gasto, e rabiscou na porta de entrada: "Pablo, ou você entra e fica, ou saia de vez da minha vida". guardou o toco do que restou na bolsa e correu apressada para o ponto. antes de pegar o ônibus, flagrou o desgraçado beijando a menina na boca.  

virginia finzetto


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

CASOS E DESCASOS

na infância eu adorava tanto uma música dos beatles, que queria que ela ficasse tocando pra sempre sem parar. depois, quando eu me separei do meu primeiro amor, chorei tanto, que pensei se não era isso o tal do fim do mundo. então, para parar de sofrer, como sofria uma adolescente da minha época, eu me convenci de que tudo se resolveria depois da minha morte, num futuro bem distante, quando nós ficaríamos unidos no céu. até lá, eu iria tratar de me divertir. com o tempo, fui me aprimorando na arte de amar e de contar histórias de separação. foram tantos casos e descasos, tantas intensas e rasas paixões, que, certamente, quando eu finalmente para lá fizer a última viagem, vou me arrepender até os últimos de ter desejado essa vasta poligamia ao som eterno do I Want To Hold Your Hand.  

virginia finzetto

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

FELIZ ANO NOVO!

Eu te desejo o novo.
Todo começo pode ser dúbio, quando o início e o término se fundem. Então, que seja esse um ponto de encontro.
Eu te desejo a ruptura na continuidade.
Deixa fora a falsa era de calendários mendigando para que seus dias arrastados sejam marcados com um “x”. Frustra o viço das agendas fresquinhas em folha, certas de que serão rabiscadas com os mesmos compromissos a se realizarem mecanicamente.
Eu te desejo o inédito.
Como em um pano virgem esticado no bastidor aguardando o bordado, fixa em ti o fio escolhido no vão entre a urdidura e a trama e, a partir daí, inicia um ponto. Seja mesmo um ponto atrás, mas que nesse ponto surja o exclusivo. Sem esquemas, deixa que os matizes combinados dos fios desfilem livres e adquiram força para impor o riscado, talvez um desenho, um colorido que ainda não tenhas imaginado a princípio.
Eu te desejo o mergulho.
Antes! Viva a proposta de bons títulos, para que tu faças ali um berço, um ninho. O deleite do livro escolhido, para que nele te entregues na paz infinita do entretenimento ao ler cada palavra a caçoar de todas as certezas. Aproveita o convite para abraçar qualquer direção que faça a ti um sentido.Eu desejo tuas garras cravadas em qualquer tempo lembrando a mesma maciez que tem ao se afundar os dedos em pelos de cão e de gato.O mesmo que para mim, eu desejo por inteiro e para o todo.
Eu te desejo o novo em ponto!
Eu te desejo um ano streaming.
virginia finzetto 
crônica publicada na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com), em 18/01/2018

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

GRANDE SER

faz anos que não posso mais falar vou ali comprar cigarro. se eu quisesse, saía por aquela porta sem dar satisfação e ia me encontrar com Joca Ramiro lá no sertão das Gerais. sei que a galope vai minha alma, pelas páginas de escritas diversas, vez ou outra uma paradinha em alguma estação do tempo,ficar ali bebericando as lembranças. aí eu me lembro que tenho uma cozinha para limpar e que não carece nem fazer café, por causa de não consumir açúcar. depois eu volto pro meu ser, tão veredas, em árida rede. 

virginia finzetto

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

FELIZ ANO VELHO

Minhas idas ao centro são frequentes. Pego o Praça Ramos fora do horário de pico e vou sentada até o ponto da Xavier de Toledo. Quando eu desço do ônibus, outra viagem se apresenta. Dificilmente fico no presente assim que olho para o Teatro Municipal. Envolvida em reminiscências, pergunto-me como tamanha beleza ainda se conserva como baluarte da história paulistana a despeito de tantos estragos já promovidos ao seu redor, seja pela falta de consciência de programas políticos, que não levam em conta a preservação do nosso patrimônio, seja pela ausência de cidadania dos ignorantes, que deliberadamente depredam e emporcalham nossas ruas.
Sigo em caraminholas, enquanto atravesso o viaduto do Chá em direção à Praça do Patriarca. No vaivém da multidão, de repente, alguém segura meu braço com firmeza. Levo um tremendo susto, pensando em assalto…
Qual deveria ser minha reação diante do avanço da miséria e da violência que aumentou barbaridade? Mas olho melhor para ele: um idoso de expressão bondosa, olhos de íris opacas amareladas, sorrindo com dentes marcados pelo abuso do fumo, face envolta em longa barba alva, prestando muita atenção em mim.
    — Bom dia, menina, você continua bela!
    — Ãhn…?
Rapidamente, minha memória vasculha nos arquivos recônditos imagens da infância e da juventude tentando encontrar alguma que case com a da insólita figura. Para minha surpresa, certa que estou de se tratar de um desconhecido, e já me esquivando com ar de ofensa, ele me chama pelo meu nome completo na língua do pê!
Depois, gargalhando ao ver minha expressão de “cruz credo”, ele prossegue:
    — Ei, Virginia Finzetto, sou eu… o Papai Noel! Não se lembra de mim?
Não faço a mínima ideia de como esse sujeito maluco descobriu meu nome. Isso só pode ter sido, para não fugir do espírito natalino, uma presepada de algum amigo que estaria por ali escondido e rindo da minha cara. Em seguida, o bom velhinho me solta e desaparece rapidinho na contramão.
Oh, céus! Só posso ter enlouquecido em meus delírios, penso.
Então, venho tornar público o caso, para que, quem sabe, possa chegar até ele, agora, todos os pedidos que armazenei desde a época em que passei a ser uma garota incrédula sobre sua real existência.
Diz a lenda que Papai Noel lê, além de cartinhas, o coração de todos os puros. Mesmo assim, resumo minha lista em apenas este desejo:
Xô, 2017!
Dissolva e leve, com a mesma velocidade vertiginosa com a qual você aconteceu, todos os equívocos cometidos covardemente em nome de qualquer divindade.
Assinado:
Eu,
a que prefere apostar em sonhos realizáveis.”

— Feliz ano, velho!
virginia finzetto 

crônica publicada na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com), em 19/11/2017