domingo, 24 de julho de 2016

VINGARÃO

eu penso que a humanidade está sofrendo de uma doença autoimune subterrânea que foi se desenvolvendo lentamente, cujos efeitos, hoje, parecem ser desproporcionais, pois todo estrago feito na surdina, que veio acontecendo durante anos, fez parte do estágio de sua própria negação. e agora, que tudo está evidente, nos assusta saber que estamos com os dias contados. e no entanto os desencadeadores ainda tentam dourar todo o mal banalizado com promessas ilusórias e prostituição. apenas os sãos resistem. pequenas e dispersas células despertas, ainda não contaminadas, porém isoladas em impotência, preservam o saber da semente e do vapor, que vingarão em água e promessa de vida carregados que serão para terras férteis. a maioria padece, e ainda dorme.

virginia finzetto

quarta-feira, 20 de julho de 2016

FILHA DA FRUTA

faz o tipo laranja, mas é igual pinha, essa annona squamosa por fora e suculenta por dentro a ofertar areinha ‘al dente’ a quem lhe seduz.  gostosa, mas que difícil é comê-la.  caprichosa, essa enrugada. seu mel dá inveja a varejeiras oferecidas que de soslaio captam zangões a rondar essa rainha, que de tonta não tem nada. serpente de sementes, esse verde é só disfarce, que veneno mesmo ela não tem.  alma sábia igual panela de ferro tangida a fogo por anos para dar bons guloseimas.  feiticeira a consolar carente hipócrita que finge manter ‘lar [não] doce lar’.  e ainda ouve de meretriz a ‘sua filha da puta’ de boca que deveria morder a própria língua toda vez que injuriasse a planta de cuja boa raiz herdou tão majestosa fruta. 

virginia finzetto

quinta-feira, 23 de junho de 2016

CUPIDO

se entregou desprotegida e foi alvo da flecha sem camisinha daquele cupido estúpido que lhe acertou em cheio. agora grávida de ilusão, acorda aturdida tentando recolher meias, sutiã, coração e calcinha, e mais um monte de lembranças espalhadas pelo chão, enquanto aguarda nove luas, nove baforadas de beise, que é o tempo que dura esse mundo etéreo, até a próxima flertada. 

virginia finzetto

quarta-feira, 22 de junho de 2016

TRAVESSIA

difíceis são os dias ensolarados se dentro de mim só chove. eu agora combino com o triste cinzento que cobre a janela e meus olhos, e o peito apertado por essa coisa que tento definir. por que exclamamos ou reclamamos se nada poderá mudar qualquer travessia? serão tão necessárias as anotações do barqueiro em sua fase malabarista tentando equilibrar sentimentos em poesia enquanto palavras alheias a tudo apenas aguardam ocupar um lugar? eu sei que hoje é só mais um dia que me ocuparei de rotinas requentadas e quimeras acalentadas. não é minha imagem inerte no lago que me fascina, mas a voz do retorno do eco que foi lá bater na sua montanha.

virginia finzetto

terça-feira, 21 de junho de 2016

BODAS DE PRATA

Hoje, Nel, se você aqui estivesse, poderíamos nos lembrar de quando decidimos oficializar nossa união. Não era necessário, a gente já tinha resolvido ficar juntos, o Arthur estava a caminho e a gente se amava. Aí você me fez sair da Lapa para irmos assinar nosso contrato no civil lá no cartório de Santo Amaro, porque era mais barato. Eu fui trabalhar de manhã e disse bem alto, na redação: pessoal, eu vou "ali", casar, e já volto! Eu nunca perdi meu bom humor. E assim durou nossa união, que hoje estaria completando bodas de prata, mesmo que a gente não tivesse se separado pelo motivo pelo qual você me deixou. Foi a única vez que me casei no papel, e não me arrependo de nada. Nel, era só para lembrar que eu nunca me esqueci de você. 

virginia finzetto

domingo, 19 de junho de 2016

CORREIO

entreguei-me sem confirmar o cep e fui parar em braços certos, fortes, cheios de pelos e poros vertendo suor, que me agarraram pelos quadris e desfizeram minha embalagem assim como uma criança que abre um presente no dia de aniversário. depois me tascou na boca uma chupada doce feito sorvete que derrete nas bordas até pingar no chão. carimbou minha face de beijos mornos e selou com ar quente do seu ritmo a minha respiração. lentamente me empurrou para o início da cama e me amou sem fim. até agora meu cérebro não tem ideia do paradeiro deste coração que já não é mais meu. 

virginia finzetto