QUANDO LHE ENSINARAM as primeiras letras, nada era diferente dos rabiscos que vinha praticando desde os seus primeiros anos de vida. Ao lado das figurinhas coloridas, as garatujas também faziam parte de uma mesma coleção, na qual todos os elementos carregavam um único e preciso significado. Em sua maioria, esses esboços davam nome às coisas, àquelas que povoavam seu mundo, ainda, de restrito saber de um iniciante. Coisas e nomes estavam tão unidos entre si, que era difícil identificar onde começava um e onde terminava outro.
Com o conhecimento das letras e dos números não seria diferente. No início, o abecedário era uma novidade ímpar, continuidade dos costumeiros traços que se somavam à rotina. E sua retina registrava exatamente o que ouvia: som e imagem, escrita e figura, como na frase “vovô viu a uva”.
No entanto, aquele caminho suave, sem surpresas, logo começou a apresentar as primeiras linhas curvas, à medida que as palavras eram percorridas pelo lápis em seu movimento de descrever a escrita a mão. A cursiva ia substituindo os ângulos retos e duros das letras em bastão, ângulos do entendimento primário, ângulos agora transformados pelos desdobramentos infinitos de um conhecimento que crescia passo a passo. Entendimento cumulativo, que instigava a procura por outras leituras, abrindo as portas do futuro universo gráfico, impresso e digital.
Da cartilha ao cartaz, do abecedário à união das letras em famílias silábicas, da frase ao parágrafo, de repente, deparava-se consigo dando um salto de percepção de composições até então desconhecidas, das regras da gramática e das relações possíveis da sintaxe que conduziam cada palavra. Não, definitivamente não era um aprendizado que se extinguiria ao término de um ano letivo, quiçá de vários…
Bulas, bilhetes, cantigas, receitas, manuais, parlendas, HQs, livros… Aos poucos, a leitura passou a ser a protagonista de sua história. Ela, em si mesma, personagem-cicerone de um mundo de misteriosos nomes a saciar a curiosidade crescente de mais um leitor.
E aquela palavra, outrora única, extrapolaria agora a singular e conhecida figurinha colorida de sua coleção de infância.
Agora a palavra correria além… Da fiel estampa ao figurativo, do status de carro-chefe à pole position de uma enorme fila de sentidos alegóricos, todos a desfilar pela sua mente.
Agora, seu ser entenderia que o domínio da leitura exige sagacidade maior para a interpretação dos símbolos. Seria preciso compreender os espaços em branco, as pausas, a combinação sutil das letras nas linhas e as nuances de suas entrelinhas a acomodar cada termo, enxergar os signos ocultos da sentença do outro. Esse é o momento da percepção de que a leitura extrapola a letra, a palavra, a frase, o parágrafo, o texto, o si mesmo.
Agora ser leitor é se transformar em protagonista na apreciação de uma esfera imensa denominada literatura. Dele espera-se fazer jus o papel de apreciador, a embalar vasta produção com seu olhar discriminatório. Entre terminados e abandonados, somente a ele cabe o destino de elaborar a lista do que irá compor a galeria dos escolhidos.
O leitor contemporâneo, por um lado, é um privilegiado nessa mina da quantidade, mas apenas se souber garimpar o ouro verdadeiro. Apartado de sua alma-guia, ele poderá enveredar pelo mecânico caminho de ser mais um leitor óptico a identificar barras.
Virginia Finzetto
crônica publicada na revista Plural Inéditos & Dispersos