terça-feira, 21 de junho de 2016

BODAS DE PRATA

Hoje, Nel, se você aqui estivesse, poderíamos nos lembrar de quando decidimos oficializar nossa união. Não era necessário, a gente já tinha resolvido ficar juntos, o Arthur estava a caminho e a gente se amava. Aí você me fez sair da Lapa para irmos assinar nosso contrato no civil lá no cartório de Santo Amaro, porque era mais barato. Eu fui trabalhar de manhã e disse bem alto, na redação: pessoal, eu vou "ali", casar, e já volto! Eu nunca perdi meu bom humor. E assim durou nossa união, que hoje estaria completando bodas de prata, mesmo que a gente não tivesse se separado pelo motivo pelo qual você me deixou. Foi a única vez que me casei no papel, e não me arrependo de nada. Nel, era só para lembrar que eu nunca me esqueci de você. 

virginia finzetto

domingo, 19 de junho de 2016

CORREIO

entreguei-me sem confirmar o cep e fui parar em braços certos, fortes, cheios de pelos e poros vertendo suor, que me agarraram pelos quadris e desfizeram minha embalagem assim como uma criança que abre um presente no dia de aniversário. depois me tascou na boca uma chupada doce feito sorvete que derrete nas bordas até pingar no chão. carimbou minha face de beijos mornos e selou com ar quente do seu ritmo a minha respiração. lentamente me empurrou para o início da cama e me amou sem fim. até agora meu cérebro não tem ideia do paradeiro deste coração que já não é mais meu. 

virginia finzetto

sábado, 11 de junho de 2016

PARADOXO

dê-se por satisfeito
se te enterrarem uma flecha no peito
que penetra fundo é dói
não por acaso em tudo há dois gumes
enquanto um cura, o outro destrói
e para quem não aguenta o intento
vem o suicídio, súbito ou lento
a perseguir a hipotética paz dos cemitérios
nunca se provou, nem mesmo a ciência
que no profundo sono da morte
cada ser [ateu, crente ou cético] leva escondido
um quê de profético e originário
que une a humanidade em um estúpido
e último desejo imaginário:
querer perpetuar a mesma incerteza
de sentir em tudo esses dois lados que rejeita,
mas pelos quais se sofre uma vida inteira...
e parte-se com a lembrança de querer voltar a ver
o sol raiar [mesmo que quadrado]
no dia do juízo final [que não há no calendário]

virginia finzetto

quinta-feira, 12 de maio de 2016

O SILÊNCIO DOS ANJOS

ele ou ela era assim. pairava. até a definição do gênero era difícil, porque queria ser neutro em tudo. desde pequeno na escola deixava de comer na cantina, porque fatalmente deveria pronunciar um nome e isso já era uma escolha. e ele ou ela não conseguia, estava além de seus princípios, julgava-se acima disso. síndrome de anjo, que difícil. deveria servir a quem? aos homens? mas e esse corpo? e essa alma? e esses desejos loucos? eu sou humano, ó dó! só haveria um jeito de resolver isso: morrer, já que havia nascido. nascido aqui, onde cada passo é uma escolha, um lado, um compromisso.

virginia finzetto