quarta-feira, 26 de junho de 2019

ESTAR NO MUNDO

corpo, esse ator cuja alma se identifica
com a dor, 
cujo espírito experimenta um átimo 
do cenário planejado há milênios.

virginia finzetto

segunda-feira, 24 de junho de 2019

ESTAR SEM SER

almejo tanto um mundo fraterno, que já visualizo parte do meu corpo na realidade paralela! se todos treinarem, eles somem!

virginia finzetto

CERTAS COISAS

não me entendam, não peço por isso. certas coisas vou falar no reservado, vou chamar você para o cantinho, vou limpar seus perdigotos do meu rosto com discrição, sentir seu cheiro de boca e guardar silêncio. certas coisas não têm dízima periódica, números depois de vírgula, claves que as antecedem, letras depois de ponto final. certas coisas são veladas ao mesmo tempo que descobertas. certas coisas são apenas pactos feitos de um impacto que emudece visionários. certas coisas nem são tão certas quando mesmo que abertas se fecham em dúvidas particulares. cantinhos guardam montanhas de certas coisas. 

virginia finzetto

sexta-feira, 31 de maio de 2019

POEMA DO EXÍLIO

dói infinitamente
ouvir de meu ego
que ele se sente machucado
e por isso quer melhorar o mundo
fazendo tudo do seu jeito

em seu sono profundo
não imagina que já esteve aqui
a bater prego
na tábua de outro crucificado

não nego, mas não o rejeito
sei que sequer ele é só amigo

de novo, quando eu partir
sem nenhum grande feito
que imagino poderia ter realizado
levarei a lembrança
de outro fim de umbigo


virginia finzetto

segunda-feira, 6 de maio de 2019

TROCADILHO

houve um tempo
em que caminhei
cega pela paixão

mas nunca estive 
tão wonder 
em toda minha  
brega vida

virginia finzetto

quarta-feira, 17 de abril de 2019

DIÁRIO DO MAGREBE

desde o dia em que descobrira que seus desejos eram atendidos, Ana passou a pensar menos em si. não havia premeditado mérito nessa atitude, não havia pressuposto ganho pessoal, não havia sequer um motivo nobre. apenas uma súbita visão acontecera certa manhã e soube que parte importante do mundo precisava estar resolvida para que ela voltasse a sorrir de verdade. tinha uma pitada egoica à solidariedade que brotara espontaneamente. entre feridos e moscas, milagres de cura realizavam-se diariamente. a 500 quilômetros de Rabat, a provisão de recursos não era suficiente para aplacar a epidemia por mais uma semana. a toda hora, lembrava-se de que estar viva dependia mais dessa força do que da vacina que se recusara a tomar. à noite, quando a temperatura caía muitos graus, o acampamento silenciava e ela, envolta em pesadas túnicas de lã, admirava as estrelas. seu camelo amarrado, sua alma voava.sem a luz, tudo se mostra outra coisa. a madrepérola verdadeira de abalone, que não reflete seu verniz iridescente à noite, guarda as proporções do que ela estava sentindo ao olhar aquele céu. era de dia que se podia pensar no mar de estrelas fixas a comandar os destinos, mesmo sendo ele apenas aparentemente inexistente. na primeira vez em que estivera no Saara, não havia deslocamentos de luzes na Via Láctea. a corrida espacial apenas começara e era praticamente impossível uma disputa de satélites orbitando a Terra. agora, ficava em dúvida sobre a realidade dos luminares, o sentido do que verdadeiramente brilhava e o engano das artificialidades a iludir os sentidos. viu a estrela Polar e pensou que a ninguém havia sido negada uma pista. algumas são percebidas de olhos fechados.
preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. teve a mesma sensação dos desequilíbrios que tivera na ocorrência de levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.agora todos esses registros pareciam fazer parte de outra Ana, de uma história inventada para mantê-lo vivo em sua memória.
 
de passagem por Iguelmimene, recordou-se de que o povoado tinha menos de 10 mil habitantes quando o conhecera. no final daquela década, um mundo inóspito revelou valores tão distintos dos seus, que nenhuma descrição de civilizações além do planeta poderia causar tanto impacto quanto o que ela havia experimentado ali. todos funcionando como um só organismo, cujas células não reivindicavam fama exclusiva para si. os berberes, que sempre se mantiveram em festas para preservar sua cultura frente à dominação dos fundamentalistas, mostravam os sinais da verdadeira resistência. naquela visita, ela e Juan, constantemente sob o olhar complacente dos que não compreendem quão fragmentado foi se tornando o Magrebe, destacavam-se como feridas expostas no deserto. talvez eles se preocupassem pela sobrevivência dos que adotaram a individualidade como forma de vida. 

assim que o jipe deixou para trás as muralhas escaldantes do ksar, Ana tirou da bolsa o mesmo porta-kohl que comprara em Tânger, há 30 anos, e lembrou da última vez em que Juan acariciara seus olhos. chorou... chorou muito sua nostalgia, mas distraiu-se com as tâmaras oferecidas pelo guia. a viagem de retorno seria longa e certos caminhos jamais deixariam de existir. 

às vésperas de seu retorno à Gibraltar, caiu um atípico e intenso temporal no lado marroquino do mediterrâneo. o fato soou como um aviso dos deuses à decisão de Ana em abandonar suas buscas por Juan. da janela do quarto da modesta pensão, ficou imaginando como seria se tivesse que passar pela experiência de viver prisioneira. não bastava ter que se conformar como hóspede de um corpo, uma reclusão forçada seria uma violência contra sua alma que tanto lutara para aprender a ser livre. a noite se aproximava e nenhuma notícia de que o clima adverso poderia se acalmar em breve. todos os ferries estavam suspensos. resignou-se em se espelhar no exemplo daquela água que escorria pela vidraça, moldando de várias formas sua existência entre o céu e a terra, aceitando ser o que era naquele momento. logo se distraiu pensando sobre as coisas fora de uma ordem lógica como era a Espanha marroquina e a Inglaterra andaluza. acendeu a luz do abajur e voltou a fazer suas anotações sobre a ponte traçada entre os dois destinos, sem adivinhar a surpresa que iria ter no jantar.


virginia finzetto

sexta-feira, 5 de abril de 2019

BREVE

diante do quadro irreversível, estaremos encerrando nossas atividades na Terra.

assinado:Deus

virginia finzetto