- Aberlado..., eu sei que você
ainda está aí. Que coisa feia! Batucar na porta do meu armário me vendo transar
com o Celso?
Silêncio.
- ...tô perdendo minha
paciência. Não vai dar sinal? Não de vida, né Abelardo, que já faz dois anos
que cê desencarnou. Vai, xispa daí. Vá buscar o caminho da luz, o caminho da
roça, o caminho da putaquetepariu! Fora daquiii!
E aos berros, ela corria insana pela casa de
imensas janelas de vidro. A cena se repetiu tantas vezes que o showroom virou
distração da vizinhança desocupada, praticante da bisbilhotice. Em pouco tempo,
fofocas sobre a ‘viúva histérica do 125’ circulavam por toda a redondeza.
Ninguém mais, apenas Júnia
podia vê-lo, mas só quando ‘ele’queria. Quando não, ela apenas pressentia o
ambiente de ar carregado, o hálito frio em sua nuca e o riso safado na cara do
falecido.
Aquilo não podia ser só uma alma
penada. Era um implante maligno em seu cérebro, uma obsessão, um desastre do
cosmos, um encosto. Carma e punição.
Sobre a mesinha de cabeceira de
seu quarto havia um altar bonitinho. Apesar do entulho de pedras, sal grosso,
54 tipos de incenso, patuás, velas e santinhos, havia um capricho que mostrava
uma intenção.
Ela tinha tentado de tudo. Em
casa, trouxe de pai de santo pós-graduado na Nigéria aos caça-fantasmas,
confundidos pela empregada com a equipe de desratização do telhado. Ninguém,
nada mesmo, conseguia dar um jeito de mostrar o reto caminho àquele habitante
do limbo.
A casa, em si, não atrapalhava
tanto a paz de Júnia, pois quando ausente de figuras masculinas o falecido
praticamente sumia. O problema era quando encontrava alguém especial, um amor.
Ah, isso não podia.
Foram várias as tentativas de
namorar ali em seu quarto, todas sem sucesso. Abelardo aparecia de repente e
ela o via, ora sentado no sofá do canto, ora assistindo tudo do alto, pendurado
no lustre ou sobre a cabeceira da cama, até que chegou esse dia, quando ele
resolveu batucar em ritmo de axé. Quem trepa numa cadência dessas? Para ela,
foi a gota d´água. Seu poder de abstração chegou ao limite.
Toca o telefone.
- E aí, foi lá?
- Sim, comprei tudo, mas tô
numa dúvida. O cara é muito estranho. Perguntei se não havia outra saída.
- E ele?
- Disse: “são 300 reais”, já
abrindo a porta.
- DEMORÔ! O cara é bom. Faz que
é batata! - respondeu a amiga, desligando.
Pior que o ‘trabalho’ tinha de
ser naquela mesma noite, de lua nova. Não bastava o escuro da praça da
encruzilhada, sequer havia o brilho das estrelas ou do luar. Melhor, pensou
Júnia, isso vai ajudar a me esconder.
Mas se o mago era bom mesmo,
ela nunca soube, pois, como era de costume, o que se ouviu naquela madrugada
foi a já conhecida gritaria.
- Tirem-me daquiii! - ela
berrava com toda a força de seus pulmões.
No alto da seringueira, traída
por uma pisada em falso, ela estava ali, presa apenas pela capa de pomba-gira
que ameaçava rasgar. Embaixo, toda a vizinhança. ‘Não é a histérica do 125?’,
perguntava uma delas com um sapato vermelho de bico na mão, enquanto Júnia era
iluminada pela lanterna da equipe de Resgate do 132.
Num galho, Júnia girava, vestida
de corpete vermelho de cinta-liga rendado, um pé descalço, segurando um maço de
cigarros Gonzaga e uma garrafa de Moët & Chandon. No outro, estava
Aberlardo, o fantasma que só ela enxergava.
virginia finzetto
Nenhum comentário:
Postar um comentário