I - O SONHO
[fique atenta à primeira mensagem de hoje e o que deseja será seu]
Antes que a lembrança se apagasse, Amine pegou a caneta e anotou no bloquinho, que costumava deixar sobre o criado-mudo, a frase do estranho sonho. O celular marcava 4 horas da manhã. Levantou, foi até a cozinha, pegou um copo de água e voltou para o quarto. Leu de novo o que acabara de escrever.
“No mínimo, meus neurônios cruzaram minhas recentes leituras sobre esoterismo, astrologia e ufos e chacoalharam tudo...”, pensou desconfiada se aquilo poderia ser mesmo um recado.
Essa mania adquirida de que podemos dar conta de nossas vidas até vir uma lua cheia e nos derrubar da cama com imprevistos de tirar o sono, a falsa sensação da ocorrência de eventos lineares, as certezas que se suicidam a cada segundo, o sossego que não dura... Vida, tempo, relógio, inseto, uma cartilha de palavras de A a Z com imagens grudadas no papel, enquanto esse alguém, que foi batizado com um nome e se torna a primeira pessoa, respira fundo de um golpe de ar.
Essa era a Amine, que, sem conseguir dormir, meditava e rabiscava em seu bloquinho.
II – OS DESDOBRAMENTOS
Enquanto percorria os labirintos da memória, desperta e sem sono, Amine ouviu a campainha. Olhou de novo no celular: 8 horas! Espiou pela janela da sala e lá estava um rapaz segurando o capacete em uma das mãos e na outra, um embrulho. Voltou ao quarto, colocou uma roupa e foi até o portão.
— Por favor, senhora, assine aqui... – entregando-lhe um protocolo.
Ela conferiu seu endereço, assinou, pegou o pacote retangular e virou-o rapidamente de um lado e do outro, enquanto o motoboy colocou o capacete e subiu em sua moto que permaneceu ligada. Não havia remetente, que estranho. Desembrulhou-o e viu um pôster. Nele apenas um número em branco, uma arte toda desenhada sobre papel fosco negro encorpado. Olhou o verso e nada. Quando resolveu tirar sua dúvida com o rapaz, ele já havia arrancado com a moto e não a ouviu.
Que coisa mais surreal, pensou. Voltou a olhar o embrulho por dentro para tentar encontrar algum bilhete, um complemento do objeto. Na embalagem apenas as inicias A e M de seu nome, Amine Medina. Seria teaser de lançamento de um novo produto no mercado?
Na tentativa de descobrir alguma pista, foi ao computador e digitou o número no campo de busca. Nenhuma das imagens que apareciam mostrara ser compatível com a que recebera: “Absolut Limited Editon 72, imported vodka; California 72; Conferência 72 horas... 72 nomes de Deus...”, foi declamando em voz alta enquanto o mouse rolava as páginas da internet.
Não, não havia nada semelhante à propaganda que recebera, mas resolveu clicar no link ‘72 nomes de Deus’, porque lhe agradara aquela chamada em hebraico e em especial o nome םדּם (72 - Mem Vav Mem – Purificação Espiritual):
“Ao meditar sobre essas letras, vá ao botão de ‘voltar’ e ‘apagar’ de sua tela espiritual atual e purifique sua vida, corrigindo-a das transgressões cometidas no passado...”.
Uau! Até que essa frase fazia sentido para explicar suas anotações sobre o sonho, mas não o suficiente para fazê-la parar aí. Foi então que lhe veio de súbito que 72 poderia significar o número total de anos de sua vida.
“Se essa fora a resposta, ainda me restam 12 anos de tempo neste planeta! O que são 12 anos comparados aos 60 já vividos?”.
— É melhor me apressar e não desperdiçar nem mais um segundo da minha vida – debochou.
Tomou um banho quente, despejou no corpo a mistura de água quente com sal grosso como de costume e voltou ao computador com a intenção de começar a trabalhar.
III – AS INTERPRETAÇÕES
Sobre a escrivaninha, o pôster com o enigmático número 72.
No bloquinho, anotações, rabiscos e suspeitas sobre o que é prazo, o significado de um Saturno implacável a lhe cobrar respeito e sua urgência extrema em se conciliar com o tempo. “Afinal, que susto é esse que todos um dia acabam levando? Por que a falta de lembrança do antes e o desconhecimento do depois, marcando um ínfimo trecho de uma linha infinita a qual chamamos de vida – até a morte nos alcançar sem hora marcada – nos enche de tanta importância?”.
“Restam-me apenas 12 anos...”, refletiu, enquanto olhava no espelho seu rosto quase sem nenhum traço da juventude que ela teimosamente insistia em cultivar. Seus cabelos, mais brancos do que grisalhos, disfarçados sob algumas camadas de tinta, apenas fingiam adiar o inevitável.
12 signos... 12 apóstolos... 12 meses... 12 casas...
12 trabalhos de Hércules... 12 tribos de Israel, 12 filhos de Jacob, 12 aparições do Cristo ressuscitado... 12 portas de Jerusalém protegidas por 12 anjos... 12 vezes 12 mil homens serão eleitos... 12 notas musicais no sistema dodecafônico... 12 divisões na esfera do relógio!
Nenhuma vida única basta a um ego ávido. Se conseguisse resolver boa parte dessa equação, ela poderia ir direto à partitura, departure, partida, e escapar inteira, dentro do possível, até a chegada da hora H.
Por onde começar? A primeira coisa que lhe ocorreu foi resgatar seu livro sobre os 12 episódios da saga mítica greco-romana para outra leitura atenta às entrelinhas. Mas nem bem leu o primeiro parágrafo e voltou a divagar: “As palavras, assim como as cores, os aromas, os sabores, todos os órgãos dos sentidos visíveis e invisíveis transformam-se em pontes que nos conectam com o que há de mais profundo no passado. Os episódios que emergem adquirem status de telas prontas para ganhar novas tintas, acrescentado a essas outras texturas de interpretações ou solventes em porções suficientes, para que o que foi capturado em um tempo remoto torne-se um nada e saia desse imenso reservatório como um pássaro liberto de amarras a voar para novos planos sem voltar a incomodar. Palimpsestos livres para seguirem outros rumos.”.
— Chega de caraminholas! – pensou em voz alta. Largou o livro e foi para a cozinha preparar seu almoço.
IV – A IMPLACÁVEL REALIDADE
De novo, a campainha. Pela janela reconheceu o mesmo portador, agora acompanhado por um homem meio grisalho.
— Boa tarde, senhora! – grita o da moto.
Amine pediu um minuto, para se livrar da faca e do cheiro de alho e cebola nas mãos, antes de ir atendê-los.
— Muito prazer, André Mendonça. – disse o homem grisalho, estendendo-lhe cordialmente a mão. Sou proprietário da AM Comunicações, que fica no centro da cidade. Ele é novo na agência, disse apontando para o rapaz da moto, e acabou errando o endereço. Só aqui em Turvinho há ruas com mesmos nomes e números. – balançou a cabeça em sinal de reprovação. Esse absurdo gerou confusão...
— Ah, não foi a primeira vez que isso aconteceu. Bem que eu desconfiei quando vi o conteúdo do envelope, mas já era tarde quando tentei chamá-lo de volta para perguntar. Meu nome é Amine Medina e, como li minhas inicias no envelope, achei que fosse para mim. – riu com simpatia e comentou sobre as coincidências.
— Se não fosse a cliente ligar perguntando sobre o material que deveria aprovar, eu também não saberia, pois o outro motoboy já conhecia o endereço, então nem me preocupei.
— Vocês aceitam água, café?
— Obrigado, mas estamos atrasados...
V – AFINAL DE CONTAS...
Na eternidade daquele minuto em que andou até o escritório para pegar a correspondência entregue por engano, todas as cenas das quimeras da qual sua alma fatalmente fora acometida apresentaram-se como um vídeo e fizeram-na rir de vergonha. Em breve, o bendito pôster, que poderia resolver o enigma de sua vida, estaria nas mãos da verdadeira destinatária.
— Aqui está, mas posso matar minha curiosidade? O que significa esse número?
— É a arte que compõe a logomarca do endereço da escola de astrologia que será inaugurada ao lado da biblioteca, na praça da igreja. Conhece? Apareça lá na quinta-feira, às 19 horas. Vai ter um coquetel e uma apresentação dos módulos de cada curso. O número, agora, você já sabe!
— Obrigada pelo convite, interesso-me muito pelo tema. Sou pisciana! – mal conseguindo disfarçar o entusiasmo.
— Ah, meu oposto complementar. Sou virginiano! – despediu-se sorrindo.
Ainda sob o impacto dos acontecimentos, Amine acompanhou com os olhos o movimento da moto até o final da rua. Depois entrou devagar e foi anotar aquele desfecho em seu bloquinho, antes que despertasse do novo sonho que já se insinuava crescer em sua imaginação sem controle.
Virginia Finzetto
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