VIRGINIA MARIA FINZETTO – SÃO PAULO –
BRASIL
INVISÍVEIS
Desde que
cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social
e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa
parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres
procrastinados.
A despensa
completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e
nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na
prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do
apartamento. Comparou as fronteiras que se fechavam ao redor do planeta, devido
à pandemia de uma nova síndrome respiratória aguda grave, à cena em que o fornecimento
de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante
e escravizada na colônia do planeta marciano em Total Recall, um clássico do
cinema.
Uma chave fecha a
porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pelo
surto. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?”
Enfim, reclusa e
solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se
seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar
para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até
chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros
descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas
existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade,
por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a que vivia lá
fora, nos dois casos carregadas de um medo exacerbado e de restrições nas
escolhas.
−
Se eu
insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode
ser que elas não me sirvam mais quando este perigo acabar. Será que
encontraremos uma Terra mais inóspita que o Marte retratado no filme?
Fora, o medo do
contágio; dentro, o medo de si mesma.
No entanto,
algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira
ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os
cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para
outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em
dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia para confortar a si
mesma.
−
Agora que me sobra mais tempo, não sei
mais o que fazer com ele.
Sem os
condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a
rotina anterior tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas
crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que
poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu
talento não seja assim tão natural. Você tem medo que, sem o Google, seu vocabulário
seja parco, sua memória seja curta e sua linguagem, pobre. Você tem medo de ser
você!”.
Três semanas e o
volume de mensagens repetitivas – de memes, de alertas, de autoajuda, de notícias
falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias
da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas
invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo,
outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se
afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas
que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse
excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se
passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas
culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de
Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara
de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:
“Quem é você, Ana
Monfort?”.
− Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com
meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas,
eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao
cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei
descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão
rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e
fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar
realidade, mas ninguém está preparado como deveria para enfrentar a finitude
anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o
vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a
menor ideia, mas arriscou pensar que era bem provável que esse pacote de
energia invisível ficasse no passado junto com a parte substancial da
humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do
sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até
aqui conhecido.
NÃO DESLIGUE OU
DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.
Até o fechamento
desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi
em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas,
se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.
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