Era
maio de 82, eu tinha uma Brasília amarela. Naquela tarde, eu estacionei em uma
vaga na rua, bem em frente a uma casa lotérica, e fui fazer compras. Na volta,
resolvi entrar para fazer um joguinho, antes de ir embora. Saí e lembrei que
havia me esquecido de comprar frutas e tinha um mercadinho bem perto dali. Então,
abri o carro, joguei as sacolas dentro, e nessas de correria, larguei o bilhete
e o troco dentro de uma delas. Depois de meia-hora, eu volto cheia de sacolas
quando noto que as outras não estavam mais ali. Cacete!... na pressa, eu
esquecera também de trancar o carro, pensei. Fiquei muito triste com o roubo,
mas entrei no veículo e fui em frente. Já lá em cima, antes de eu virar para
entrar na minha rua, vi um sujeito agachado na calçada vasculhando umas
sacolas, que, imediatamente, reconheci como sendo minhas. Quase dei um cavalo
de pau ao frear e acabei estacionando no meio da rua. Desci ao berros, chamando
o cara de todos os palavrões. Nesse mesmo instante, vinha subindo a polícia com
a sirene acionada. O cara, sentindo-se ameaçado, conseguiu fugir correndo, como
quem sai catando coquinho no chão, largando tudo pra trás. Eu fiquei muito feliz
com a sorte de ter recuperado minhas compras e, quando me viro em direção ao
meu carro, vejo a viatura da polícia queimando os quatro pneus na freada bem em
cima da minha Brasília. Largo tudo e coloco as mãos na cabeça, ao ver descendo
os dois policiais com armas apontadas para mim. O susto foi tão grande que
quase desfaleço, porque, se eles tivessem amassado minha caranga, eu teria que
arcar com aquele preju sozinha. Aí um deles, de praxe, pediu minha habilitação
e os documentos do carro, eu entreguei tudo e, depois de eles constatarem o
equívoco, me liberaram. Entro no carro e fico alguns minutos recuperando meus
sentidos. Fui embora com o coração ainda disparado de tanta emoção. Uns metros
mais adiante, eu vejo a polícia, a mesma que havia me abordado, apontando armas
agora para um sujeito, o mesmo que havia me roubado. Ele, com as mãos na
cabeça, e uma sacola no chão, ao seu lado. Ahhhhh, pensei, maldito bandido,
conseguiu fugir levando uma de minhas compras!Imediatamente parei o carro e fui
lá tirar satisfação. Os policiais, reconhecendo a Brasília amarela começaram a
discutir entre si, ora apontando a arma para o bandido, ora para mim, porque
desconfiaram que EU fosse cúmplice do
larápio. Depois de muitas explicações, consegui convencê-los de que EU era a
vítima, e que havia parado ali exatamente para recuperar o resto das minhas
compras, ou seja, a sacolinha que estava ali bonitinha no chão. Resumo da
ópera: das 10 sacolas de compra, NAQUELA estava o bilhete de loteria, ainda com
o troco! No dia seguinte saiu o resultado, e eu havia feito a quina sozinha.
Quase
enfartei! Demorei muito a me recuperar do susto. Perdi o sono, já não comia
mais, tamanha a ansiedade e o temor que tomaram meu corpo e minha alma. Durante
um tempão fiquei com o bilhete, olhando toda hora para ele, conferindo os
números com o recorte do jornal com o resultado e guardando-o em um lugar
seguro. Repetia o ritual quase que diariamente, só pensando no que eu deveria
fazer. O prêmio era muito alto, iria mudar radicalmente minha vida. E eu me
perguntava se estava preparada para isso. Até que um dia, decidi ir resgatar o prêmio,
assim de supetão, como quem não quer nada. Estacionei minha Brasília amarela bem
em frente à Caixa Econômica Federal, desci firme e resoluta, com a bolsa à
tiracolo, quando, ao olhar para a esquerda, vejo um sujeito se aproximando a
passos largos em minha direção. Mas, assim que eu o reconheci como sendo o
mesmo ladrão, aquele que havia roubado minhas compras do carro há meses, ele
deu um puxão na minha bolsa e fugiu com ela em disparada. Nessa hora, não havia
nenhum policial por perto, não havia nenhuma viatura em alta velocidade e não
houve nenhum déjà vu. Só o meu coração colapsou e eu nunca mais me recuperei
desse episódio. Moral real deste conto
de ficção: um raio não cai no mesmo lugar, mas pode infernizar a vida de uma
mesma pessoa por várias encarnações.
virginia finzetto