terça-feira, 27 de março de 2018

TRAVESSIA

com a cabeça recostada, ela observava postes e casas a se deslocarem rapidamente pela janela. em algumas horas estaria em Algeciras, pernoitaria ali e pegaria logo cedo o primeiro ferry para Tânger. tudo planejado e pontual, como descrito no mapa que pegara no quiosque de turismo em Madrid. riu da memória de sua última vez em Asilah: teria ainda hoje o mesmo valor de um camelo? salivou ao lembrar das sardinhas fritas. mas nenhum dos retratos que tirou registrou o perfume da medina que impregnara seu coração, carregado de lembranças de Juan. talvez não tenha mais fim esta dor, pensou. 

virginia finzetto

domingo, 25 de março de 2018

CANDEEIRO

na parede de madeira da sala de chão batido, o pavio ressecado do candeeiro pendurado sinalizava o tempo de abandono ali sem uso por falta de fluido. de novo, acenderia a mesma grossa vela, que deixara em cima da mesinha de canto, já em toco, rodeada de seus endurecidos choros anteriores, e se sentaria ao lado, na velha cadeira de assento de palha. restaria pouco lume para lamentar a escuridão, mas o suficiente para ela terminar de ler a missiva de dez laudas, frente e verso, que recebera de Inácio. qualquer pessoa teria, apressadamente, à luz do dia, liquidado o assunto. menos ela, que nunca deixara de ouvir os causos dele com a mesma atenção que lhe dedicara sua vida inteira. capaz de prever em suas linhas quando um segredo estava prestes a se revelar, ela mansamente dobrava a carta e afagava-a contra o peito, depois guardava-a para o dia seguinte, como quem tapa provisoriamente a fissura de uma represa para evitar o desperdício do precioso líquido, adiando o final do prazer que aquela leitura lhe proporcionava... 

virginia finzetto

FÔLEGO

minha alma
na caixa torácica
gorjeia em foles
como um pássaro
pego no alçapão

esse alpiste
diário que tenta
me comprar
não serve de alimento
é só um alento
um hálito que engana

a dor dessa prisão

virginia finzetto

MANIA DE AMAR

de paixão não se morre,
embriaga-se, apenas
com fartos goles de licor
pitanga, absinto, pistache
rara tatuagem
passageira dor


muita decalcomania
farta alucinação
todas...

um porre!


virginia finzetto

CARAVANA

não  arranco de  mim nenhuma poesia 
sou hospedaria de palavras beduínas
que se  importam  só com o caminhar
se encontram  o oásis de um deserto
espalham ali  sementes  de acasos e
sem pressa sabem  as 36 luas contar


virginia finzetto

domingo, 18 de março de 2018

POR QUE ESTÁS TÃO TRISTE?


não foi a camélia
foi Marielle 
que levou quatro tiros
e depois morreu
ela é que era mulher
de verdade
não foi Amélia
e hoje
não é outro dia...


virginia finzetto

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

RECADO DE BATOM

antes que o movimento da casa de cômodos aumentasse com a chegada dos novos hóspedes, Ana decidira escrever rapidamente um recado. no meio daquela algazarra, pensou qual seria o melhor lugar para colocar visível a mensagem. desistiu. teria que escrever um cartaz, do contrário o bilhete poderia ser confundido com tantos outros papeizinhos espalhados e misturados a contas vencidas, propagandas de pizzaria e dedetização, recibos da farmácia, lixo... a geladeira estava coberta de ímãs de toda espécie. Arminda perdera ali o horário da medicação e acabou esquecendo por dias de ingerir o comprimido da pressão. internada, não resistiu. então Ana resolveu pegar seu batom vermelho, já gasto, e rabiscou na porta de entrada: "Pablo, ou você entra e fica, ou saia de vez da minha vida". guardou o toco do que restou na bolsa e correu apressada para o ponto. antes de pegar o ônibus, flagrou o desgraçado beijando a menina na boca.  

virginia finzetto