quinta-feira, 29 de março de 2018

MINARETE

suas lembranças viajavam à velocidade do Altaria visto do minarete da mesquita de Córdoba. suas lágrimas incontroláveis, agora, eram acalentadas pela mesma direção do trem, seguindo rumo ao seu destino, sem poder voltar atrás pelo mesmo trilho como algo que se possa manobrar com facilidade naquela aceleração. quantas recusas poderiam ter lhe poupado a tristeza, se tivesse entendido que todas elas jamais poderiam retornar ao ponto em que ainda não teriam sido proferidas, como probabilidades quânticas em que seu desejo pudesse alterá-las. desculpas ou justificativas, para que servem? nada mudaria o desferimento da sentença dada. fechou os olhos e se abraçou mentalmente. sentiu em si o peso de se ser o que se é. teria tempo, mais de cinco horas, para curar sua digestão. por um instante pensou se Juan padecera da mesma inquietação... 

virginia finzetto

terça-feira, 27 de março de 2018

TRAVESSIA

com a cabeça recostada, ela observava postes e casas a se deslocarem rapidamente pela janela. em algumas horas estaria em Algeciras, pernoitaria ali e pegaria logo cedo o primeiro ferry para Tânger. tudo planejado e pontual, como descrito no mapa que pegara no quiosque de turismo em Madrid. riu da memória de sua última vez em Asilah: teria ainda hoje o mesmo valor de um camelo? salivou ao lembrar das sardinhas fritas. mas nenhum dos retratos que tirou registrou o perfume da medina que impregnara seu coração, carregado de lembranças de Juan. talvez não tenha mais fim esta dor, pensou. 

virginia finzetto

domingo, 25 de março de 2018

CANDEEIRO

na parede de madeira da sala de chão batido, o pavio ressecado do candeeiro pendurado sinalizava o tempo de abandono ali sem uso por falta de fluido. de novo, acenderia a mesma grossa vela, que deixara em cima da mesinha de canto, já em toco, rodeada de seus endurecidos choros anteriores, e se sentaria ao lado, na velha cadeira de assento de palha. restaria pouco lume para lamentar a escuridão, mas o suficiente para ela terminar de ler a missiva de dez laudas, frente e verso, que recebera de Inácio. qualquer pessoa teria, apressadamente, à luz do dia, liquidado o assunto. menos ela, que nunca deixara de ouvir os causos dele com a mesma atenção que lhe dedicara sua vida inteira. capaz de prever em suas linhas quando um segredo estava prestes a se revelar, ela mansamente dobrava a carta e afagava-a contra o peito, depois guardava-a para o dia seguinte, como quem tapa provisoriamente a fissura de uma represa para evitar o desperdício do precioso líquido, adiando o final do prazer que aquela leitura lhe proporcionava... 

virginia finzetto

FÔLEGO

minha alma
na caixa torácica
gorjeia em foles
como um pássaro
pego no alçapão

esse alpiste
diário que tenta
me comprar
não serve de alimento
é só um alento
um hálito que engana

a dor dessa prisão

virginia finzetto

MANIA DE AMAR

de paixão não se morre,
embriaga-se, apenas
com fartos goles de licor
pitanga, absinto, pistache
rara tatuagem
passageira dor


muita decalcomania
farta alucinação
todas...

um porre!


virginia finzetto

CARAVANA

não  arranco de  mim nenhuma poesia 
sou hospedaria de palavras beduínas
que se  importam  só com o caminhar
se encontram  o oásis de um deserto
espalham ali  sementes  de acasos e
sem pressa sabem  as 36 luas contar


virginia finzetto

domingo, 18 de março de 2018

POR QUE ESTÁS TÃO TRISTE?


não foi a camélia
foi Marielle 
que levou quatro tiros
e depois morreu
ela é que era mulher
de verdade
não foi Amélia
e hoje
não é outro dia...


virginia finzetto