sem a luz, tudo se mostra outra coisa. a madrepérola verdadeira de abalone, que não reflete seu verniz iridescente à noite, guarda as proporções do que ela estava sentindo ao olhar aquele céu. era de dia que se podia pensar no mar de estrelas fixas a comandar os destinos, mesmo sendo ele apenas aparentemente inexistente. lembrou da primeira vez em que estivera no Saara e não havia deslocamentos de luzes na Via Láctea. a corrida espacial apenas começara e era praticamente impossível uma disputa de satélites orbitando a Terra. agora, ficava em dúvida sobre a realidade dos luminares, o sentido do que verdadeiramente brilhava e o engano das artificialidades a iludir os sentidos. viu a estrela Polar e pensou que a ninguém havia sido negada uma pista. algumas são percebidas de olhos fechados...
domingo, 6 de maio de 2018
sexta-feira, 4 de maio de 2018
DESERTO
desde o dia em que descobrira que seus desejos eram atendidos, ela passou a pensar menos em si. não havia premeditado mérito nessa atitude, não havia pressuposto ganho pessoal, não havia sequer um motivo nobre. apenas uma súbita visão acontecera certa manhã e ela soube que parte importante do mundo precisava estar resolvida, para que ela voltasse a sorrir de verdade. tinha uma pitada egoica à solidariedade que brotara espontaneamente. entre feridos e moscas, milagres de cura realizavam-se diariamente. a 500 quilômetros de Rabat, a provisão de recursos não era suficiente para aplacar a epidemia por mais uma semana. a toda hora, lembrava-se de que estar viva dependia mais dessa força do que da vacina que se recusara a tomar. à noite, quando a temperatura caía muitos graus, o acampamento silenciava e ela, envolta em pesadas túnicas de lã, admirava as estrelas. seu camelo amarrado, sua alma voava.
virginia finzetto
quinta-feira, 3 de maio de 2018
MARGINAIS
a rachadura da calçada era um precipício que separava famílias vizinhas de bichinhos. quando chovia, barquinhos de sujeira passavam ligeiros com os pequenos dos dois lados vibrando de alegria. as mães, às margens, jogavam os bracinhos arrepiados aos céus esbravejando contra as peraltices de suas crias. mas ali não havia mais nada, a não ser aquela veia aberta que às vezes fingia unir em um rio uma grande população.
virginia finzetto
quinta-feira, 26 de abril de 2018
A REPÚBLICA DE TODOS NÓS
Naquele
sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada para o ensaio. Antes de
atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também aguardando fechar o
semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena ficava no início ou no
final da rua. Resgatada repentinamente de suas lembranças, ela espontaneamente
abriu um sorriso e respondeu que estava indo para lá. O rapaz apresentou-se
como Sergio e comentou estar atrasado para encontrar um amigo que o convidara a
fazer o teste para substituir um dos atores na peça Doce América, Latino
América.
Ana
imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois conhecia Antônio Pedro,
o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois que prenderam Augusto Boal.
Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época em que Boal fora levado
pela polícia e torturado na prisão, antes de seu exílio. Por bem, preferiu se
calar, pois não queria se expor àquele desconhecido sobre esses assuntos.
Lado
a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma esperando por Sergio. Sem
mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por ali e aproveitaria para vê-la
ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo esse que não apareceu.
Ana
logo pensou que havia caído na cantada de um desconhecido, mas procurou se
dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar seu interesse. Ao término, foi
ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir dele, alegou que precisava se
apressar na caminhada até a Avenida São João, onde pegaria o ônibus. Ele sorriu
e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na Praça da República. Ela até que gostou
dessa paquera.
Mas,
durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a falar abertamente sobre a
luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as células que recrutavam
jovens combativas e ousadas “como você” disse-lhe olhando-a firmemente nos
olhos , para atuarem na resistência e coisa e tal. Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin
e Trotsky e completou sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto
ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele discurso tinha cara de ter sido
planejado, decorado. Não demorou muito para ela perceber a situação em que se
metera. Sua intuição dizia para se fazer de alienada.
Então,
com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com perguntas idiotas, evitando
mostrar qualquer conhecimento profundo sobre política. Seus pensamentos eram
relâmpagos cruzando sua mente em todas as direções. Desconfiada, concluiu: “Esse
homem já está na minha mira e não é de hoje... ele é um agente da polícia e
está me investigando”. Gelou!
Embora
não estivesse comprometida com nenhuma organização clandestina, Ana era contra
o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis e ‘laranjas’ presos por
engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude urgente, dar um jeito de se
livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio
foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas reuniões que ele dizia conhecer.
Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no assédio.
Alguns
passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma Veraneio C14 cinza
estacionada em local proibido, exatamente para onde eles estavam se dirigindo.
“Ai,
meu Jesus, por que eu fui brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por
favor, senhor meu Deus me ajude...”, orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela
pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de teatro que a vira
saindo em companhia de um desconhecido...
“Pronto,
é uma armadilha... Eles vão me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me
aconteceu... Pensa rápido, pensa rápido, pensa rápido Ana...”.
Quando
estavam quase em frente à Praça lotada, como era comum nos finais de semana, Ana
fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao chão. Na queda, ralou o joelho, a
mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito verdadeiro de dor. Sérgio tentou
acudi-la, mas ela se recusou a levantar. Permaneceu sentada na calçada, gritando
cada vez mais alto. Com isso, conseguiu atrair a atenção das pessoas, que foram
se agrupando ao seu redor. Fingindo uma dor absurda, ela desatou a chorar, como
se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto
mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava para a periferia da roda que
se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa que era, Ana completou a cena
com um ataque de nervos. Aos berros, foi inventando um monte de mentiras: “eu
quero o meu pai... ele é da polícia... preciso que ele venha aqui com
urgência...”.
As
pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao pronto-socorro, mas ela queria que fossem
até o teatro chamar sua amiga e a diretora da peça infantil na qual participava.
Só sairia dali em companhia das duas. Mal terminara de falar isso, ela se
arrependeu, pois Sergio poderia suspeitar das outras também. E aí, sim, ela
chorou de verdade.
Naquele
momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e pediu que todos se
afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque. Disse que ficaria ali com
ela, enquanto alguém correria até o teatro para avisar o que acontecera.
Dando
graças à providência divina pela aparição daquele anjo, Ana disfarçadamente olhou
ao redor.
Sergio
já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá estacionada.
Logo
chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos foram se dispersando.
Aliviada,
Ana se levantou, limpou do rosto as últimas lágrimas e suspirou...
Sua
República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada, desafiando o cinza-escuro
da ditadura. A transgressora Praça da República dos Meus Sonhos, do grande
poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela escolhera para declamar ali
em silêncio:
“A estátua de Álvares de
Azevedo é devorada com
paciência pela paisagem de morfina
a
praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo
e
crianças brincando na tarde de esterco
Praça
da República dos meus sonhos
onde
tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde
beatificados vêm agitar as massas...”
Por
muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse episódio, sem chegar a uma conclusão
sobre o repentino sumiço do rapaz: “Seria ele um rato infiltrado ou um contato de
verdade tentando me recrutar?”.
Jamais
ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que veio, Sergio desapareceu sem
deixar rastro.
Era
verão de 1972.
Virginia Finzetto
sexta-feira, 20 de abril de 2018
GUERRA HÍBRIDA
não há surpresas abaixo da linha do equador
o canto da natureza não anuncia mais as estações
o outono está preso, atado ao pau seco
sofrendo pela triste primavera deflorada que não virá
a mão da praga ordena a retirada de seus brotos
o canto da natureza não anuncia mais as estações
o outono está preso, atado ao pau seco
sofrendo pela triste primavera deflorada que não virá
a mão da praga ordena a retirada de seus brotos
ainda em seu ventre
enquanto o galo tenta recordar em que hora deve cantar
enquanto o galo tenta recordar em que hora deve cantar
olhando tristemente para o galinheiro
que choca ovos que não são seus
virginia finzetto
terça-feira, 17 de abril de 2018
OUÇO
sílabas balbuciadas interrompem
o sal do meu choro
para indagar a deus
se minha dor é não aceitar seus motivos
mas ouço do misericordioso
que eu não sei o que é deus
muito menos o que são motivos
então volto a brigar com os homens
que penso terem a resposta
de que os motivos partem daqueles
que perderam o coração
certos de que servem a deus
mas ouço do misericordioso
que eles não sabem o que é deus
muito menos o que são motivos
virginia finzetto
sábado, 14 de abril de 2018
BARCELONA
o álbum de fotos está guardado em qualquer caixa entre talheres e louças embrulhadas na última mudança. tê-lo em mãos não faz diferença neste momento. logo apresso-me em abrir o livro que, não por acaso, continua no topo da pilha. na página marcada, vejo-me sentada no banco da estação em que desci na última parada, todas as letras a me convidar. embarco nessa leitura misturando o calor da xícara de café com um pouco de tontura. estaremos sempre em Montjuic, abraçados dentro da cabine do teleférico. lembranças agora jorram e ricocheteiam meus flancos tirando-me o ar. preciso descer e vomitar, não consigo prosseguir viagem. a memória que me arrebata esfola, bate, fustiga e não me trará você de volta nunca mais.
virginia fInzetto
crédito da imagem: Teleferic.1931 Port-Montjuich. Barcelona - https://br.pinterest.com/agomezgine/montjuic-i-el-poble-sec/
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