quinta-feira, 26 de abril de 2018

A REPÚBLICA DE TODOS NÓS

Naquele sábado, Ana descia a Rua da Consolação, apressada para o ensaio. Antes de atravessá-la, um rapaz, que parara ao seu lado, também aguardando fechar o semáforo, puxou conversa. Perguntou se o teatro de Arena ficava no início ou no final da rua. Resgatada repentinamente de suas lembranças, ela espontaneamente abriu um sorriso e respondeu que estava indo para lá. O rapaz apresentou-se como Sergio e comentou estar atrasado para encontrar um amigo que o convidara a fazer o teste para substituir um dos atores na peça Doce América, Latino América.
Ana imediatamente se mostrou interessada em ajudá-lo, pois conhecia Antônio Pedro, o diretor do novo grupo que se apresentava ali, depois que prenderam Augusto Boal. Veio-lhe à mente as notícias que circulavam à época em que Boal fora levado pela polícia e torturado na prisão, antes de seu exílio. Por bem, preferiu se calar, pois não queria se expor àquele desconhecido sobre esses assuntos.
Lado a lado, ambos seguiram o trajeto, em curtos diálogos sem relevância.
Porém, ao chegar ao teatro, não havia pessoa alguma esperando por Sergio. Sem mostrar nenhum desagrado, ele disse que ficaria por ali e aproveitaria para vê-la ensaiar, enquanto o amigo não chegasse. Amigo esse que não apareceu.
Ana logo pensou que havia caído na cantada de um desconhecido, mas procurou se dedicar de corpo e alma ao ensaio, sem demonstrar seu interesse. Ao término, foi ao camarim pegar suas coisas e, ao se despedir dele, alegou que precisava se apressar na caminhada até a Avenida São João, onde pegaria o ônibus. Ele sorriu e pediu para acompanhá-la, pois ficaria na Praça da República. Ela até que gostou dessa paquera.
Mas, durante o trajeto, repentinamente Sergio desatou a falar abertamente sobre a luta armada no Brasil, a guerrilha do Araguaia, as células que recrutavam jovens combativas e ousadas “como você”  disse-lhe olhando-a firmemente nos olhos , para atuarem na resistência e coisa e tal.  Demonstrando domínio sobre o assunto, citou Lênin e Trotsky e completou sua fala louvando a Revolução Cubana.
Enquanto ele falava, Ana foi ficando ressabiada. Aquele discurso tinha cara de ter sido planejado, decorado. Não demorou muito para ela perceber a situação em que se metera. Sua intuição dizia para se fazer de alienada.
Então, com meias palavras, ela foi despistando o rapaz com perguntas idiotas, evitando mostrar qualquer conhecimento profundo sobre política. Seus pensamentos eram relâmpagos cruzando sua mente em todas as direções. Desconfiada, concluiu: “Esse homem já está na minha mira e não é de hoje... ele é um agente da polícia e está me investigando”. Gelou!
Embora não estivesse comprometida com nenhuma organização clandestina, Ana era contra o regime militar. Sabia de casos de inocentes úteis e ‘laranjas’ presos por engano. Pressentiu que deveria tomar uma atitude urgente, dar um jeito de se livrar dele sem levantar suspeitas.
Sergio foi apertando o cerco, convidando-a para uma dessas reuniões que ele dizia conhecer. Apesar de sua pronta recusa, ele insistia no assédio.
Alguns passos mais e Ana começou a suar frio, quando viu uma Veraneio C14 cinza estacionada em local proibido, exatamente para onde eles estavam se dirigindo.
“Ai, meu Jesus, por que eu fui brigar com a igreja e não acreditar em você? ... Por favor, senhor meu Deus me ajude...”, orou sentindo suas mãos úmidas de medo.
Ela pensou em seus pais, seus irmãos, sua amiga do grupo de teatro que a vira saindo em companhia de um desconhecido...
“Pronto, é uma armadilha... Eles vão me sequestrar e ninguém vai ficar sabendo o que me aconteceu... Pensa rápido, pensa rápido, pensa rápido Ana...”. 
Quando estavam quase em frente à Praça lotada, como era comum nos finais de semana, Ana fingiu tropeçar e, de propósito, se atirou ao chão. Na queda, ralou o joelho, a mão e o cotovelo, arrancando-lhe um grito verdadeiro de dor. Sérgio tentou acudi-la, mas ela se recusou a levantar. Permaneceu sentada na calçada, gritando cada vez mais alto. Com isso, conseguiu atrair a atenção das pessoas, que foram se agrupando ao seu redor. Fingindo uma dor absurda, ela desatou a chorar, como se tivesse fraturado alguma parte sua.
Quanto mais gente se aproximava, mais Sergio se afastava para a periferia da roda que se formara. Então, fazendo jus à atriz talentosa que era, Ana completou a cena com um ataque de nervos. Aos berros, foi inventando um monte de mentiras: “eu quero o meu pai... ele é da polícia... preciso que ele venha aqui com urgência...”.
As pessoas ali se ofereceriam para levá-la ao pronto-socorro, mas ela queria que fossem até o teatro chamar sua amiga e a diretora da peça infantil na qual participava. Só sairia dali em companhia das duas. Mal terminara de falar isso, ela se arrependeu, pois Sergio poderia suspeitar das outras também. E aí, sim, ela chorou de verdade.
Naquele momento, uma mulher se apresentou como enfermeira e pediu que todos se afastassem, alegando que Ana estava em estado de choque. Disse que ficaria ali com ela, enquanto alguém correria até o teatro para avisar o que acontecera.
Dando graças à providência divina pela aparição daquele anjo, Ana disfarçadamente olhou ao redor.
Sergio já não estava mais ali, nem a viatura C14 lá estacionada.
Logo chegaram a diretora e sua amiga e, aos poucos, todos foram se dispersando.
Aliviada, Ana se levantou, limpou do rosto as últimas lágrimas e suspirou...
Sua República voltara a brilhar naquela tarde ensolarada, desafiando o cinza-escuro da ditadura. A transgressora Praça da República dos Meus Sonhos, do grande poeta maldito Roberto Piva, o poema-oração que ela escolhera para declamar ali em silêncio:

                “A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo
e crianças brincando na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas...”

Por muito tempo Ana se recordaria de cada detalhe desse episódio, sem chegar a uma conclusão sobre o repentino sumiço do rapaz: “Seria ele um rato infiltrado ou um contato de verdade tentando me recrutar?”.
Jamais ficaria sabendo a resposta. Da mesma maneira que veio, Sergio desapareceu sem deixar rastro.

Era verão de 1972.  

Virginia Finzetto

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