quinta-feira, 12 de julho de 2018

HAI CAI

outrora rico gigante a brilhar
agora é chacota 
nem terra nem ar nem mar

virginia finzetto

terça-feira, 10 de julho de 2018

sábado, 7 de julho de 2018

NAS HORAS

nas horas em que não estou de acordo comigo, eu viro minha cara para um lado e o outro lado vira a cara pra mim...

nas horas de descompasso, não há música, não há dança, só um atropelo de pensamentos tolos, tipo assim...

nas horas em que eu não sou quem sou, meio ausente, meio minha, meio de ninguém, é que eu me encontro, enfim.


virginia finzetto


MELISSA MEL

o normal das aves é voar
dos gatos, dormir
só de vez em quando as aves dormem
já os gatos voam sempre

virginia fInzetto

quarta-feira, 20 de junho de 2018

SECO E QUENTE

preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. lembrou dos desequilíbrios que tivera em alguns levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.

virginia finzetto

terça-feira, 19 de junho de 2018

O BLUES DELA É VERMELHO

Acabava com a caixa de lenços de papel, enxugando lágrimas de tristeza e coriza ao mesmo tempo, enquanto tudo era abafado pelo barulho das máquinas de escrever e dos ramais que não paravam de tocar. Naômi viajava em seus pensamentos: “mais este plantão interminável com a editora-nariz-chefe-empinado ... vontade de sumir, sair desta maldita gripe e deste emprego... tô pelas tampas, não aguento mais esta merda...”. Deu uma olhada na última pauta do dia: entrevistar o velho mestre Assad: “O senhor aprecia mortadela?”. Pepinos destinados apenas à repórter ralé, matéria por telefone, piada: a fanha entrevistando o outro que não ouvia. Mas fez, não sem escapar das gargalhadas a cada pergunta que berrava sobre o embutido gourmet. 
  “Por hoje chega”, pensou, “que não venha mais nada...”.
  Toca o telefone e todos fingem ignorar. Naômi vai atender quase se arrastando:
  — Redação, boa noite.
  — Boa noite, meu nome é Ney... queria passar uma nota sobre o Mautner para o caderno de espetáculos...
Enquanto Naômi anotava tudo mecanicamente, pensava naquele nome e na voz que não lhe era estranha. No final, arriscou:
  — Ney... Ney Rama? 
  — Sim...
  — Oi, sou Naômi Medeiros... 
  Bastou ouvir o nome para que ele se abrisse em surpresas. Entre as lembranças, um convite. Na semana seguinte um café, e depois muitos outros.
  O país atravessava uma crise e ninguém acreditava mais no governo sequestrador de poupanças. Grana escassa, salários aviltados. Sem um puto para se mudar de um pequeno apê de quarto e sala que teve de voltar a dividir com os pais, Naômi não reclamava de ter gastado suas economias naquela viagem. O lugar, portanto, não importava, pois nada poderia ser mais blues do que sua rubra personalidade encarnada. Perfeita draga a devorar tudo em suas entranhas em chamas. Gostava mesmo de topar com almas torturadas, obcecadas e pessoas loucas, e também de atrair homens que falassem seu idioma, o mesmo para traduzir a idiotice que é obedecer a regras e sofrer de esperança. Não, ela não fora talhada para isso. Desconfiava de tudo, desde que nascera. Sua alma só conseguia aportar em nostalgias de lugares por ela inventados, da lembrança de um paraíso perdido que sequer tinha certeza de sua existência, mas que já havia lido em livros de esoterismo, não desses que ficam largados na mesa da recepção de consultórios, todo rabiscado e faltando páginas. Não era dessa fonte que ela bebia. Sua busca abdicava de turismo, coisa de que ela passou longe no tempo em que esteve fora do país e do ar, mergulhada em autodescobertas, enquanto lambia feridas e colava cacos de sua vida destroçada pela dor dos lutos, de morte a descasamento. 
  Ney atualizara seu passado com Naômi em tórridos encontros. “Como era bom poder escapar de vez em quando para aquele refúgio face norte, tão quentinho no inverno polar de Sampa.” Uma dádiva para quem já não sabia mais o que era intimidade amorosa desde que havia voltado ao Brasil. Devolveram-lhe tesão, afeto e consolo com juros, além de juras e de uma leitura da alma, dessas que não se consegue proteger qualquer segredo de quem já lhe penetrara por inteiro. “Tipo de encontro alquímico: nada se perde, tudo se solve”, definia para si mesma, sem nenhuma certeza do que isso significava.
  A cada três finais de semana trabalhados, Naômi desfrutava um de descanso. Mas não naquela fatídica data da morte da atriz. Convocaram-na para cobrir o acidente do bateau mouche na baía da Guanabara. Para sua surpresa, já que nunca era chamada para nada fora do jornal, muito menos da cidade. Lá se foram sua folga de final de ano e o bota-fora do Ney.
   Mas o destino novamente colaborou, colocando ambos no mesmo voo. Para ela, ponte área, para ele, conexão. Ela ficou no Rio, ele seguiu em outro avião. E quase trocaram as mochilas, entre abraços emocionados e o beijo da derradeira despedida.
Dele, ela alugou a kit, herdou o LP dos Beatles, um livro de poesia, o mezanino de madeira, marcas de amor no colchão e a imensa alegria de voltar a ter seu cantinho. Dela, ele levou um coração envolto em mata-borrão, que era para que o sangue da ruptura não deixasse pistas em sua repentina decisão de retornar para a mulher e os filhos.
  Naômi chegou tarde da noite e foi direto para a redação, deixou a matéria sobre a mesa da chefa e pediu as contas. Haveria de se manter de outra maneira, qualquer uma que pudesse substituir tanta perda por qualquer ganho de melhor remuneração. Dali em diante, estava valendo qualquer risco.

virginia finzetto

[conto, in revista Scenarium Plural, Me deixe a sós com meu mundo blues, julho de 2017]

segunda-feira, 18 de junho de 2018

AVE, LOUCAS NOITES!

No quesito visão, as aves de rapina estão no topo da excelência e, nessa espécie, quando se trata de enxergar na escuridão, destaca-se a coruja. Seus olhos de telescópio aproximam qualquer alvo, mesmo em noites sem luar.
   — Ah, que inveja desses irmãos!

  Hoje, com minha visão deficiente, não aprecio ambientes de pouca luz.
   Mas sempre foi assim?

   — Claro que não!
  Quando criança, eu identificava pé de maracujá nascendo em mata fechada a muitos metros de distância. E à noite, quando me deitava na rua de terra sem movimento de carros e nenhuma iluminação, era capaz de acompanhar extasiada a elíptica dos planetas visíveis a olho nu subindo e descendo no horizonte, tendo ao fundo o braço nebuloso da via Láctea atravessando as constelações.
  Sentia uma especial sintonia com o entardecer e a existência na escuridão. Depois que o sol se punha, em mim se abria um mundo de sensações misteriosas, que nasciam com o silenciar do dia. Criaturas noturnas vinham me fazer companhia, mas logo se recolhiam, bem antes da meia-noite. Era o cansaço das brincadeiras diurnas que vinha render meu corpo, pois durante a semana eu tinha de ir à escola logo ao raiar do dia.
 Minha atração pela madrugada e a capacidade em me manter acordada crescia proporcionalmente à minha idade. No auge da juventude, era capaz de virar noites seguidas. Passeios noturnos à Cidade Universitária ou ao Parque do Ibirapuera eram frequentes, durante os quais acabávamos adormecidos em cama fofa de folhas secas quando chegava a manhãzinha. Contrapondo-se a esses momentos de silêncio, revezavam-se as noitadas nos botecos boêmios, os “sem porta”, assim chamados por não terem horário para fechar.
 No entanto, com o outono da vida, sinto que estou voltando a ser menina. Das corujas quero apenas a sabedoria, já que hoje adormeço e acordo mesmo é com as galinhas.

virginia finzetto


[crônica, revista Scenarium Plural, Wild NIghts, homenageando Emily Dickinson, 2017]