sábado, 21 de julho de 2018

MARCADORES DE LIVRO

enquanto observava pela janela o voo planador e suave da paloma branca, Ana pensou como seria o pleno vigor da vida utópica em que os seres não mais precisariam disputar entre si ou esconder algo, qualquer, de quem quer que fosse. haveria uma revolução pelo menos quanto à temática dos romances ou apenas arriscariam alguma escrita nessa direção os que tivessem uma boa memória ou o resquício de antiga imaginação capaz de registrar sentimentos que pudessem transmitir veracidade a esse tempo, desconhecido da maioria da humanidade, que ficara para trás? senão isso, que tipo de literatura seria praticada em um mundo sem conflitos no qual homens e anjos agora confraternizavam anseios sem trocar uma palavra sequer? quem ou que grupo promoveria uma censura diante da probabilidade do ressurgimento do príncipe das trevas, que, sabiam, habitando o mais secreto do silêncio de cada um, nunca havia morrido. o marcador da livraria San Ginés, presente de Juan, interrompia aquela leitura ao final de mais um capítulo. no verso ainda estava gravado o telefone de sua amiga. ela, que sofrera tanto por carregar as angústias de uma vida submissa a um marido machista. este, que se dividia entre todos os prostíbulos da cidade plantando sementes em ventres inférteis, enquanto exigia dela que aceitasse a monocultura que devastara sua flora virginal durante trinta anos sem gerar um fruto. preciso de sol! - pensou -  andar pelas calles, ir ao Arenal, visitar a igreja e depois fazer compras e comer um pincho de tortilla na Fuencarral. 

virginia finzetto

quarta-feira, 18 de julho de 2018

PNEUMÁTICA

outro dia eu engoli um espelho
queria que minha dor se visse ali, cara a cara
para que depois pudesse se traduzir
ao mundo guiado pelas aparências
no íntimo, nós nos entendemos
pneumática, ora alojada na boca do estômago,
ora agarrada às minhas costelas flutuantes
vez ou outra, ela desaparece
na troca com o ambiente, disfarçada de alegria
em alguma distração

virginia finzetto

quinta-feira, 12 de julho de 2018

HAI CAI

outrora rico gigante a brilhar
agora é chacota 
nem terra nem ar nem mar

virginia finzetto

terça-feira, 10 de julho de 2018

sábado, 7 de julho de 2018

NAS HORAS

nas horas em que não estou de acordo comigo, eu viro minha cara para um lado e o outro lado vira a cara pra mim...

nas horas de descompasso, não há música, não há dança, só um atropelo de pensamentos tolos, tipo assim...

nas horas em que eu não sou quem sou, meio ausente, meio minha, meio de ninguém, é que eu me encontro, enfim.


virginia finzetto


MELISSA MEL

o normal das aves é voar
dos gatos, dormir
só de vez em quando as aves dormem
já os gatos voam sempre

virginia fInzetto

quarta-feira, 20 de junho de 2018

SECO E QUENTE

preciso me acostumar a escrever sob qualquer condição, pensara minutos antes. não havia papel e grafite disponíveis quando veio a notícia urgente de que uma grande tempestade de areia os atingiria em breve. rapidamente, procurar abrigo era o que importava. ficaria o registro para depois, embora fosse difícil manter qualquer ideia conexa durante esse fenômeno. lembrou dos desequilíbrios que tivera em alguns levantes em Andaluzia. ainda que passageiros, os ventos secos e quentes que vinham do Saara a perturbavam de maneira impiedosa. Ana percebia que seus líquidos eram sacudidos com a mesma intensidade e violência com que as águas do mar chacoalhavam nessas ocasiões, sinalizando internamente difíceis travessias. agora, em pleno deserto, estava a um passo de experimentar o impacto de outra forte natureza sobre sua frágil fortaleza. por dias, o céu e a terra se fundiriam em um imenso véu amarronzado. sem refúgio, perde-se a noção do horizonte, das referências de se estar no mundo e pode-se até enlouquecer. enquanto era levada para dentro da tenda do acampamento, sua pequena e macia mão experimentou a proteção familiar dos dedos desidratados de Juan. ali abrigados, ele a abraçava sempre da mesma maneira que fazia em tempos de tormenta. assim protegida, ela fechava os olhos e se entregava à calma de contar as batidas do coração do amado, até adormecer.

virginia finzetto