primeiro movimento
Há dias o sol não aparecia, e no ar um cheiro forte de
tempestade se aproximava. Em outras épocas ela não teria dado tanta importância ao fato bastante corriqueiro
na aldeia. Hoje, ambas, ela e aldeia, não eram as
mesmas. Uma aridez infinita havia invadido suas
terras, e o pouco que brotava, dando pequenos frutos, fora profanado, arrancado por quadrilhas de ladrões e legiões de vampiros que invadiam a região todos os
dias. E ainda aproveitavam e abusavam dela e
dos seus, sem piedade. Seu útero
era uma ferida aberta cuspindo tanto sangue, que ela perdeu a noção da
diferença entre o que era sequela da violência do que era sua menstruação. Lilith em dilúvio. Ela ainda ovulava.
segundo movimento
Acordara de madrugada banhada em suor e sangue, e sua temperatura teria
explodido um termômetro. Teria sido
febre ou delírio aquele sonho? Ou ambos? A infecção não cedia, e agora era impossível segurar também a
urina do medo, que arrebentava diques no meio da noite...
outrora
da grota que sangra
agora
brota lágrima
gota a
gota
de angra
.
.
.
Talvez por isso a cena de um dilúvio iminente, segundos antes
de acordar. Sonhou que havia uma nave imensa em seu
quarto, de proporções irreais. Do
alto uma voz lhe dizia que poupasse apenas as suas partes, pares e ímpares,
abrindo mão de vizinhos adormecidos em distrações e promiscuidades e de qualquer
bandido declarado, isento ou não de paixões. Ela entrou, mas ainda não havia acordado.
terceiro movimento
Aquela voz, cuja imagem não era visível, ordenou que se lacrasse a
nave por fora, e ela permaneceu em seu interior. A princípio claustrofóbica, pôs-se a gritar e a se debater entre
suas próprias duras e resistentes paredes corporais, enquanto apenas os seus,
que a ouviam, não podiam ajudá-la, pois entregues ao comando do alto estavam aceitando ficar trancafiados
juntos, em total silêncio e vigília.
quarto movimento
Aos poucos, calma e aceitação vieram acudi-la, ao mesmo tempo em
que o barulho do estrondo do dilúvio externo quase lhe arrebentou os tímpanos. A força de todas as águas que caíam trincaram
suas defesas naturais e ela se prostrou de joelhos, em oração, enquanto tudo
que ficara do lado de fora ia sendo liquidado com a língua de raio de uma
justiça que até então ela desconhecia. Coisas que jamais voltaria a encontrar. Choveu quarenta dias e quarenta noites sem
parar.
quinto movimento
Ela pressentiu quando a nave se elevou com as águas, e nenhum
dano lhe atingiu. A turbulência exterior contrastava com o acomodamento interior de seu corpo. O sangue e a urina haviam se estancado,
agora em reconciliação. Mas ainda
não podia tocar todas as suas outras partes, em suspensão, que aguardavam sua
própria hora. Alisava freneticamente seu monte de Vênus, na
intenção de tirar os vestígios de toda invasão a que fora submetida até então. Lá fora já
não havia cumes.
sexto
movimento
Ela ainda não acordara
quando a porta da nave se abriu. Em silêncio soube de súbito que a
única maneira de não sentir mais nenhuma dor emocional era deixar que ela
doesse até que ela mesma a levasse à origem, única, de todas as outras dores,
cuja resposta sempre esteve dentro de si mesma. Há
urgência no encontro do amor verdadeiro, porque atravessar tudo isso, de mãos
dadas, é a mais produtiva das parcerias. ...deus gosta!
sétimo
movimento
E quando toda água diluviana baixou em
segurança, a voz pediu que ela abrisse os olhos, pois haveria de ser por essas
janelas que entraria a luz da revelação, conforme a promessa que ouviu:
muitas vezes, e tantas vezes,
quão indivisíveis e indizíveis
são meus amores
como arco-íris, eles se escondem nos céus,
e aparecem aos incrédulos, vez ou outra,
em sete cores
E ela renasceu em segurança e em total comunhão com o que
sempre lhe pertencera.
por virginia finzetto
Meu conto na coletânea COLETIVO, publicado pela Scenarium Livros Artesanais, em 2017.
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