sexta-feira, 8 de março de 2019

AS OITO MARIAS

Ela suportava uma vida no cabresto desde os 15 anos, quando se casou grávida dele, o capataz. Uma adolescência encarcerada e infeliz. Nunca tivera orgasmo. Nunca sentira nada próximo do que lia nas revistas ser um prazer.

Ele era rápido e violento. Toda vez que se aproximou dela evitou preliminares, carícias e beijos. Ele tinha nojo. Era uma rotina de coitos noturnos depois da ablução de suas partes íntimas, que ele a obrigava fazer.

Após cada estupro, ele se virava e roncava feito um porco, encharcado que vivia de cachaça barata. Não dava a mínima para a alma do que restava daquele corpo feminino em prantos largado ao seu lado.

Desses abusos nasceram ‘marias’  assim escritos em minúsculas e registrados tardiamente em cartório, para demonstrar seu menosprezo cada vez que nascia mais uma cria.
Ele queria um macho, e ela só fazia ‘marias’.

Quando Erasto foi encontrado morto na zona da periferia do pequeno município, a vida dela mudou. No dia seguinte ao enterro, partiram para viver longe dali, ela e uma fileira em escadinha das meninas que pariu.

...mariaEunice, mariaEster, mariaEugênia, mariaEfigênia, mariaElena, mariaElisa, mariaEulália e mariaEsperança...

Tal qual era feito com o gado da fazenda, a letra ‘E’ principiando o segundo nome carregava significados de ferro em brasa marcando como sua propriedade cada fêmea gerada por ‘mariazinha’ assim escrito em minúscula e no diminutivo, para demonstrar seu menosprezo pela mulher que não lhe dava um varão.

Do casamento até o dia de sua alforria, por arrastados sete anos, ‘mariazinha’ não conheceu seu ventre sem germinar. Vigilante aos abusos, que ele atentava até contra as filhas, seu corpo era templo de gestações e escudo matizado dos espancamentos que sofria.

‘mariazinha’ transformou todo aquele ódio que nutriu pelo falecido em forças para educar suas crianças, com garra e retidão de caráter. Jurou que daria a elas uma nova vida.

Desde pequenas, quando mariaEunice caia, mariaEster amparava; quando mariaEugênia adoecia, mariaEfigênia cuidava; quando mariaElena reclamava, mariaElisa ouvia; quando mariaEulália cantava, mariaEsperança reunia todas em roda para dançar.

Mas quando choravam, era o colo de ‘mariazinha’ que iam buscar.

Elas sempre se contaram sua própria história. Nunca se permitiram ao esquecimento, pois toda aquela herança genética amaldiçoada não seria transmitida igual doença a contaminar a descendência.

Todas as noites, a mesa quadrada na sala de jantar, com duas cadeiras em cada lado, recebe as oito ‘marias’, agora adultas e nutridas. Há risos, alegria, conversa compartilhada e, naqueles segundos de silêncio que parecem parar o tempo, seus olhares profundos se cruzam e elas experimentam a força de uma construída cumplicidade feminina.

Virginia Finzetto

                                                             •∆•

Conto publicado na revista literária Plural Coletivo 21, da Scenarium Plural, março 2019.

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