Ela suportava uma vida no
cabresto desde os 15 anos, quando se casou grávida dele, o capataz. Uma
adolescência encarcerada e infeliz. Nunca tivera orgasmo. Nunca sentira nada
próximo do que lia nas revistas ser um prazer.
Ele era rápido e violento. Toda
vez que se aproximou dela evitou preliminares, carícias e beijos. Ele tinha
nojo. Era uma rotina de coitos noturnos depois da ablução de suas partes
íntimas, que ele a obrigava fazer.
Após cada estupro, ele se virava
e roncava feito um porco, encharcado que vivia de cachaça barata. Não dava a
mínima para a alma do que restava daquele corpo feminino em prantos largado ao
seu lado.
Desses abusos nasceram ‘marias’
assim escritos em minúsculas e registrados tardiamente em cartório, para demonstrar
seu menosprezo cada vez que nascia mais uma cria.
Ele queria um macho, e ela
só fazia ‘marias’.
Quando Erasto foi encontrado
morto na zona da periferia do pequeno município, a vida dela mudou. No dia
seguinte ao enterro, partiram para viver longe dali, ela e uma fileira em
escadinha das meninas que pariu.
...mariaEunice, mariaEster,
mariaEugênia, mariaEfigênia, mariaElena, mariaElisa, mariaEulália e mariaEsperança...
Tal qual era feito com o
gado da fazenda, a letra ‘E’ principiando o segundo nome carregava significados
de ferro em brasa marcando como sua propriedade cada fêmea gerada por ‘mariazinha’
assim escrito em minúscula e no diminutivo, para demonstrar seu menosprezo pela
mulher que não lhe dava um varão.
Do casamento até o dia de
sua alforria, por arrastados sete anos, ‘mariazinha’ não conheceu seu ventre
sem germinar. Vigilante aos abusos, que ele atentava até contra as filhas, seu
corpo era templo de gestações e escudo matizado dos espancamentos que sofria.
‘mariazinha’ transformou
todo aquele ódio que nutriu pelo falecido em forças para educar suas crianças,
com garra e retidão de caráter. Jurou que daria a elas uma nova vida.
Desde pequenas, quando mariaEunice
caia, mariaEster amparava; quando mariaEugênia adoecia, mariaEfigênia cuidava; quando
mariaElena reclamava, mariaElisa ouvia; quando mariaEulália cantava,
mariaEsperança reunia todas em roda para dançar.
Mas quando choravam, era o
colo de ‘mariazinha’ que iam buscar.
Elas sempre se contaram sua
própria história. Nunca se permitiram ao esquecimento, pois toda aquela herança
genética amaldiçoada não seria transmitida igual doença a contaminar a
descendência.
Todas as noites, a mesa
quadrada na sala de jantar, com duas cadeiras em cada lado, recebe as oito ‘marias’,
agora adultas e nutridas. Há risos, alegria, conversa compartilhada e, naqueles
segundos de silêncio que parecem parar o tempo, seus olhares profundos se
cruzam e elas experimentam a força de uma construída cumplicidade feminina.
Virginia Finzetto
•∆•
Conto publicado na revista literária Plural Coletivo 21, da Scenarium Plural, março 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário