sexta-feira, 17 de julho de 2020

INVISÍVEIS

Desde que cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres procrastinados.
A despensa completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do apartamento e comparou as fronteiras que também se fechavam ao redor do planeta, devido à pandemia de insuficiência respiratória grave, à cena em que o fornecimento de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante e escravizada da colônia marciana no Total Recall, um clássico do cinema.
Uma chave fecha a porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pela praga. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?” Enfim, reclusa e solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade, por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a liberdade que vivia lá fora, nos dois casos carregados de um medo exacerbado e de restrições nas escolhas.

Fora, o medo do contágio; dentro, o medo de si mesma.

− Se eu insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode ser que elas não me sirvam quando este perigo acabar. Quem sabe, a Terra possa ser menos inóspita que o Marte retratado no filme.
No entanto, algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia a si mesma como desculpa.
− Agora que me sobra mais tempo, não sei mais o que fazer com ele.
Então, sem os condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a rotina tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu talento não seja assim tão natural. Você tem medo de perceber que sem o Google seu vocabulário é parco, sua memória é curta, sua linguagem é pobre. Você tem medo de ser você!”.
Três semanas e o volume de mensagens repetitivas − de alertas, de autoajuda, de notícias falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo, outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:
“Quem é você, Ana Monfort?”
− Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas, eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar realidade, mas ninguém nunca está preparado como deveria para enfrentar a finitude anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a menor ideia, mas arriscou que era bem provável que esse pacote de energia invisível ficasse no passado junto com a parte da humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até aqui conhecido.
NÃO DESLIGUE OU DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.
Até o fechamento desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas, se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.

virginia finzetto

Nenhum comentário:

Postar um comentário