Sabe aquele filme, comer, rezar e amar, em que a personagem tira um ano sabático só para si? Pois é, eu também fiz isso. O ano era o de 1.987, e eu juntei todos os meus recursos financeiros e fui com a cara e a coragem passar, e passear, um ano pela Europa. A ideia era ficar na casa de parentes e amigos, o que permitiria que eu permanecesse o maior tempo possível por lá. Minha primeira parada foi a Espanha, e, depois, fui para a Itália. Fiquei um tempo em Milão na casa de uma amiga, e de lá, partiria para Trento, onde tenho parentes. A única dúvida era se eu deveria passar primeiro em Veneza, que queria conhecer também, ou em Trento. Na hora de comprar o bilhete do trem, foi aquela confusão: como não sei falar italiano, eu e o caixa não nos entendemos de forma alguma. E ele, provavelmente já descolado e meio sem paciência com turistas, resolveu decidir por mim e me despachou para Trento. Lembro que a viagem foi longuíssima, parando em algumas cidades para trocar de trem, na maior correria. Uma dessas cidades em que passei, muito rapidamente, foi Verona, famosa por ser o cenário da peça Romeu e Julieta. Quando, finalmente, cheguei ao meu destino, já era quase noite e batia um vento gelado, típico do outono europeu. Parei em uma espécie de mercearia e, conforme o combinado, liguei para a sobrinha da minha avó, a fim de pegar as coordenadas para chegar à casa da minha família, que ficava em Selva di Levico, perto dali, mas um lugar não exatamente fácil de se chegar. Qual não foi minha surpresa, ao ver que a ligação não completava de jeito nenhum, e, quando completava, dava sinal de ocupado. Como naquela época não tínhamos as facilidades de hoje, como celular e internet, na hora me bateu um pânico, até porque não conhecia nada naquela cidadezinha, e, além disso, meu dinheiro já estava quase acabando. Quando dei por mim, estava no meio da rua, com bastante frio, uma mala pequena e uma mochila nas costas. Só sei lhe dizer que as lágrimas caíam do meu rosto, sem que eu conseguisse controlar. Nesse momento de desespero, eu lembrei de um conto sufi, que havia lido um pouco antes de iniciar minha viagem. O conto se chama Mushkil Gusha, que em árabe, significa 'o dissipador de todas as dificuldades'. A história diz que, aquele humilde de coração, que recorda Dele, e estiver com verdadeira necessidade, sempre irá encontrar o caminho. Esse conto pertence à tradição oral sufi, e é comemorado todas às quintas-feiras (e aquele dia era, exatamente, uma quinta-feira). Quase que imediatamente após eu pensar nessa história, apareceu um senhor, bem velho, e me perguntou por que eu estava chorando. Expliquei que estava perdida, pois não havia conseguido contatar uma parente minha e apesar de ter o endereço, não sabia como chegar na casa dela. Por sorte, o homem, apesar de não entender português, entendia o espanhol, e assim, conseguimos nos comunicar. Solícito, ele foi conversar com uns jovens do outro lado da rua, que, muito cordialmente, me ofereceram uma carona e me deixaram exatamente na casa dos meus familiares. Confesso que a pequena viagem de Trento até Selva di Levico teve um quê de aventura: eu, em um carro pra lá de velho, tendo por motorista um jovem no melhor estilo punk, escutando heavy metal. Ao chegar no local, fiquei certo tempo admirando a casa em que minha família italiana morava, toda de pedras, construída no século XIX. Fui muitíssimo bem recebida pelos meus parentes, e a cereja do bolo foi dormir na mesma cama que pertenceu ao meu bisavô... Um verdadeiro presente! Mas o que mais me intrigou nessa história toda, foi que, antes de entrar no carro, quis agradecer ao homem pela sua generosidade, e, simplesmente, não o vi mais. Até hoje penso, ou melhor, sinto, que aquele senhor foi a personificação do dissipador de dificuldades presente no conto sufi. Certos acontecimentos da vida me fazem crer que coincidências não existem. O que há, são sincronicidades. Como diz belamente a história: peça de coração humilde, e será atendido na medida de sua necessidade. E, realmente, eu vivenciei que assim é!
🇮🇹
Roberta Gasparotto, em: diga-me uma história e eu conto sua memória.
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