quinta-feira, 4 de abril de 2019

ALÉM DA LENDA

se você quer morrer para ficar na presença de Deus, saiba que vai ter que entrar numa fila imensa. lá na frente, ocupando o primeiro lugar, está um desconhecido que, dizem, é da época de Adão. ele avisou ao de trás que pediu que o de trás avisasse o de trás, e assim sucessivamente, para que avisassem os que chegavam. parece que houve muito ruído nessa comunicação entre as pessoas que ainda não estavam na presença de Deus e o último que acabava de chegar, ainda carregado de vícios terrenos, tentava furar uma brecha, um atalho na bicha, mas todos gritavam: "nós avisamos!". enquanto isso, corre a informação, entre um grupo de sábios, de que Deus mesmo não está nem aí.

virginia finzetto

POESIA

poesia
é um poema
com presença
de espírito


virginia finzetto

sexta-feira, 29 de março de 2019

TOLEDO

no banco da praça do alto da cidade, Ana apreciava toda a vista da parte oeste de Toledo. quase a se por, o sol ainda iluminava o chão e fazia surgir o furta-cor nas penas das pombas em movimentos ligeiros a disputar migalhas do pão de um sanduíche descartado. àquela hora, a nostalgia baixava pontualmente e vinha gazetear lembranças do museu de Santa Cruz, em que ambos se deram conta, como um casal apaixonado que sempre olha na mesma direção, existir nas imensas telas de El Greco o domínio singular de pinceladas de luz sobre suas esguias figuras melancólicas. quantos dias iguais a esse teriam se passado? certeza que antes da reconquista de Al Andaluz pelos Reis Católicos alguém estivera ali mesmo, séculos atrás, a desfrutar, ao contrário daquele sentimento, de uma alegria radiante. imaginou como poderia ter sido essa época se o mesmo artista retratasse o real e o sobrenatural, o que pertencia ao céu e o que era próprio da terra, sem a tristeza profana na face de seus personagens tão sagrados. menos santificadas, luzes e sombras, assim também eram as camadas de tinta que ela tentava jogar sobre o quadro de detalhes que velavam e revelavam facetas de Juan e o que permanecia como verdade em sua vida.

virginia finzetto

segunda-feira, 18 de março de 2019

sexta-feira, 15 de março de 2019

DESARME-SE

o bullying alimenta o sociopata

é a arma que mata o outro

e o tiro que sai pela culatra

virginia finzetto

sábado, 9 de março de 2019

sexta-feira, 8 de março de 2019

AS OITO MARIAS

Ela suportava uma vida no cabresto desde os 15 anos, quando se casou grávida dele, o capataz. Uma adolescência encarcerada e infeliz. Nunca tivera orgasmo. Nunca sentira nada próximo do que lia nas revistas ser um prazer.

Ele era rápido e violento. Toda vez que se aproximou dela evitou preliminares, carícias e beijos. Ele tinha nojo. Era uma rotina de coitos noturnos depois da ablução de suas partes íntimas, que ele a obrigava fazer.

Após cada estupro, ele se virava e roncava feito um porco, encharcado que vivia de cachaça barata. Não dava a mínima para a alma do que restava daquele corpo feminino em prantos largado ao seu lado.

Desses abusos nasceram ‘marias’  assim escritos em minúsculas e registrados tardiamente em cartório, para demonstrar seu menosprezo cada vez que nascia mais uma cria.
Ele queria um macho, e ela só fazia ‘marias’.

Quando Erasto foi encontrado morto na zona da periferia do pequeno município, a vida dela mudou. No dia seguinte ao enterro, partiram para viver longe dali, ela e uma fileira em escadinha das meninas que pariu.

...mariaEunice, mariaEster, mariaEugênia, mariaEfigênia, mariaElena, mariaElisa, mariaEulália e mariaEsperança...

Tal qual era feito com o gado da fazenda, a letra ‘E’ principiando o segundo nome carregava significados de ferro em brasa marcando como sua propriedade cada fêmea gerada por ‘mariazinha’ assim escrito em minúscula e no diminutivo, para demonstrar seu menosprezo pela mulher que não lhe dava um varão.

Do casamento até o dia de sua alforria, por arrastados sete anos, ‘mariazinha’ não conheceu seu ventre sem germinar. Vigilante aos abusos, que ele atentava até contra as filhas, seu corpo era templo de gestações e escudo matizado dos espancamentos que sofria.

‘mariazinha’ transformou todo aquele ódio que nutriu pelo falecido em forças para educar suas crianças, com garra e retidão de caráter. Jurou que daria a elas uma nova vida.

Desde pequenas, quando mariaEunice caia, mariaEster amparava; quando mariaEugênia adoecia, mariaEfigênia cuidava; quando mariaElena reclamava, mariaElisa ouvia; quando mariaEulália cantava, mariaEsperança reunia todas em roda para dançar.

Mas quando choravam, era o colo de ‘mariazinha’ que iam buscar.

Elas sempre se contaram sua própria história. Nunca se permitiram ao esquecimento, pois toda aquela herança genética amaldiçoada não seria transmitida igual doença a contaminar a descendência.

Todas as noites, a mesa quadrada na sala de jantar, com duas cadeiras em cada lado, recebe as oito ‘marias’, agora adultas e nutridas. Há risos, alegria, conversa compartilhada e, naqueles segundos de silêncio que parecem parar o tempo, seus olhares profundos se cruzam e elas experimentam a força de uma construída cumplicidade feminina.

Virginia Finzetto

                                                             •∆•

Conto publicado na revista literária Plural Coletivo 21, da Scenarium Plural, março 2019.