I
quantos clichês você coleciona para explicar a saída para o caos do mundo? quantos desses foram comprovadamente eficazes na sua vida? Ana não pestanejou nas respostas e concluiu o formulário de pesquisa para imigrar para Andrômeda, não a galáxia, embora não deixasse de sê-la, se comparada com a distância astronômica que esta queria manter da humanidade normal, segundo seu estatuto, mas uma comunidade cujo endereço era sigilo até para quem se candidatava. e assim, de olhos fechados, ela apostava que a felicidade estaria fora. arrumou sua mochila com poucos pertences pessoais, algumas fotos para recordar o passado, quando se sentisse saudosa, guloseimas para a viagem e a roupa do corpo. quando os ponteiros estavam quase à meia-noite, alguém desesperado gritava seu nome em frente do edifício em que morava. Ana aproximou-se da janela do sétimo andar e seu coração balançou. ali estava ele, todo molhado de chuva, a máscara se desfazendo junto às lágrimas de desespero. gritava alto seu nome e uma lista de impropérios, sendo a palavra covarde a que mais lhe tocava. Ana quis descer para conversar cara a cara, mas achou melhor não se colocar mais uma vez à prova. dessa vez não iria ceder. precisava tentar uma saída, antes de reincidir em atravessar seu pulso com outra lâmina afiada. queria se surpreender ainda com este mundo, com algo que pudesse acabar com sua fixação por Hu, que lhe asfixiava com sua mania de parceiro carente, de querer se completar por meio dela. Ana não queria ser metade de nada, sua busca era a de voltar a ser inteira. mas Hu era forte, magnético. parou de drama e ficou estático, com a cabeça levantada, hipnotizando-a com o olhar. então ela amassou o tecido da blusa próximo à garganta, segurando a raiva, e acenou um sim com a cabeça.
II
Andrômeda e Via Láctea, assim se denominam as duas comunidades localizadas, até onde se sabe, em continentes diferentes no globo, possuem métodos questionáveis, à luz da inteligência ética, de sondar a alma de cada humano a fim de exercer sobre ele uma influência subliminar, rebaixando-o a títere sem alma ou elevando-o a divindade. os que não têm nenhum poder de questionamento interior são facilmente arrastados para o sonho de viver em Via Láctea. ali aproveitam, por tempo indeterminado, seus mais inconfessos desejos, sem que por isso sejam vítimas de qualquer punição. seus únicos tributos seriam exalar com frequência humores e emoções sem autocontrole, para que os sugadores possam se manter vivos e abastecidos em seus poderes de manipulação. os questionadores da vida, os sofredores obsessivos, os esquizofrênicos e os suicidas apostam em Andrômeda como última chance de dar a si mesmos, antes de abandonarem o mundo, uma oportunidade de mudança radical. desse lugar não se tem muitas notícias, a não ser a de que seus mentores escolhem a dedo o candidato, sondando-o com métodos que vasculham qualquer esconderijo em seu íntimo. ambas as comunidades operam secretamente e só vem à luz o que é para facilitar suas arregimentações, mas Andrômeda é um mistério, já que ninguém escapou dali.
III
o temperamento de Hu se parecia muito pouco com o de Ana. ele já havia entrado e saído de tantas seitas e escolas de autoconhecimento que era figura conhecida nos evidentes rastros em que a Via Láctea podia operar oficialmente. na última vez que deixou de seguir um desses atalhos, desiludido e dizendo a si mesmo que não se meteria em outra fria, entrou em um boteco de esquina e ali viu Ana, em sua singular beleza, por quem se apaixonou à primeira vista. ficou surpreso com sua reação, então disfarçou. de outra mesa um pouco afastada, sorvendo calmamente seu destilado preferido, Hu olhava de soslaio para aquela figura miúda, aparentemente frágil, segurando à sua frente um copo meio cheio de água mineral. calculou, pelo conteúdo da garrafa, que ela acabara de chegar. então, começou a espaçar mais entre um gole e outro, para dar tempo de acalmar seu coração. tirou um livro da mochila e inclinou-se fingindo interesse na leitura. nem completou um parágrafo, levantou a cabeça e viu que ela já não estava mais ali, apenas um copo vazio e a garrafa pela metade. de rompante, agora sem nenhum constrangimento, olhou em todas as direções e nada. nesse intervalo, Ana havia conferido uma mensagem no celular, levantara-se de súbito e, sem ser notada, saíra apressada para a rua.
IV
na esquina próxima estava Antum, codinome do contato do partido, para lhe passar mais uma tarefa urgente. Ana pegou dele a bolsa e a colocou a tiracolo, sem perguntar sobre seu conteúdo. ambos trocaram um aperto de mão e se dirigiram rapidamente em direções opostas. apreensiva, com as mãos geladas, ela desceu a escadaria do metrô a passos rápidos. estava tão nervosa que não conseguia passar pela catraca, até se dar conta que estava entrando pela saída. como se sentia idiota em denunciar sua fragilidade ao tentar cumprir uma missão à qual jamais havia sido talhada, a não ser para provar a si mesma uma coragem que nunca tivera. lutava clandestinamente da mesma maneira que sobrevivia escondendo-se de si. aquilo já estava passando dos limites que podia suportar, pois esse medo começava a superar o pavor de enfrentar seus monstros internos. queria largar a encomenda em qualquer banco do vagão e abandonar aquela loucura. depois refletiu e se convenceu de que colocaria em jogo a vida de outras pessoas, mas jurou que esse seria o último episódio de sua missão. cinco estações à frente, desceu e logo avistou na plataforma o homem mais velho, com as características que foram passadas, a quem deveria entregar a encomenda. checaram as senhas, outro aperto de mão e Ana virou as costas. quanto menos soubesse, melhor seria para a segurança de ambos. só falhou na hora de seguir o combinado, que era voltar pelo mesmo trajeto. e foi nessa marcada que ela dançou.
V
não havia quase nada que não estivesse sob a vigilância sigilosa
da polícia política e de seus agentes. para eles, tudo poderia ser controlado
por meio de uma inteligência artificial com algoritmos de espionagem de última geração.
quando necessário, faziam um grampo direto na fonte. prisão e tortura somente
em último caso, já que o aparato funcionava de modo satisfatório quando o poder
se travestia de democracia. acontece que algumas organizações,
tendo estudado profundamente as articulações comuns praticadas sob a intervenção
da Via Láctea, também utilizavam métodos de infiltração na polícia, para tentar se defender
de possíveis ataques, disputando nesse cenário um complicado jogo não percebido
pelos cidadãos comuns, em geral entorpecidos pela rede de controle subliminar
das mídias cúmplices.
à parte, sustentado e dirigido por um sofisticado corpo de códigos secretos
- independentemente da ideologia que estivesse no poder – estava o “partido”,
que vinha atuando nos bastidores da história através dos séculos com uma
prática herdada de antigos ensinamentos de Andrômeda. aleatório como um
caleidoscópio associado a uma rigorosa combinação de gematria entre diversos sistemas
abjad, a verdade se ocultava em mensagens aparentemente tolas - muitas vezes em
ilustrações que incluíam piadas ou frases
de autoajuda atribuídas geralmente a falsos autores -, que eram passadas à luz
do dia, aos destinatários certos, por qualquer aplicativo telefônico ou pela
internet, sem levantarem suspeitas ou serem decifradas por quem não tinha o domínio da
técnica.
uma vez ciente e adepta da missão para a qual fora recrutada e
das regras básicas de como utilizar a decodificação que lhe competia, Ana ganhara a
função de conexão entre duas pontas - ambas sempre com falsas identidades e que não se
conheciam entre si. para isso, acessava as chaves que abriam apenas os códigos exatos
àquela tarefa, exclusiva, que jamais se repetia. Ana era um elo que não sabia
do antes nem do depois e sequer tinha ideia da extensão da corrente. funcionava
como uma peça única que, caso se partisse, encerraria informações desconexas em
si mesma.
VI
Hu tomou o restante de sua bebida em um único gole, pagou a conta e foi apressadamente para a rua, olhando para todos os lados, mas não viu mais Ana. apalpou os bolsos do casaco e da mochila e lembrou que deixara o crachá em cima da mesa da sala. caminhou até seu apartamento, que ficava a poucos quarteirões dali, para pegá-lo, pois sem ele não entraria na corporação. fazia pouco tempo que tinha sido aprovado no concurso para o cargo de investigador, com a intervenção oculta do partido. ele era um dos infiltrados. da mesma maneira que qualquer outro membro, não conhecia a organização além do contato que lhe passava as instruções e que poderia ser acessado a qualquer momento com total segurança. no íntimo, quando aceitou fazer parte do esquema, fora atraído mais pela adrenalina, que ainda sustentava seus altos e baixos de humor adquiridos em outras práticas alienadas da Via Láctea do que pela nobre causa, mas depois se convenceu que fazia aquilo principalmente pelo dinheiro e pelo poder de aquisição material e status que queria manter. sua função basicamente era a de comunicar a tempo ao partido e evitar qualquer prisão de um de seus quadros que tivesse caído.
VII
atordoada pela súbita decisão de abandonar sua missão, Ana acabou se distraindo e desceu mais um andar da estação do metrô, em vez de atravessar para o outro lado da mesma plataforma e voltar até onde estaria Antum. nesse equívoco, a poucos passos da escada rolante, ela viu o homem a quem acabara de entregar a encomenda sendo conduzido pelo braço por dois policiais, um de cada lado. em choque, ela engoliu em seco e percebeu que ele a reconhecera e passara uma mensagem por meio de piscadas.
ainda
trêmula, Ana caminhou pela plataforma olhando o chão até avistar, em um canto,
a bolsa que ela havia entregue e que, por astúcia e total obediência
às normas de conduta do partido, fora poupada de ser levada com o seu contato pelos
policiais. agachou-se e a recuperou, fechando os olhos aliviada. subiu
rapidamente as escadas e tomou o metrô, dessa vez para o trajeto correto,
pensando sobre o que poderia significar todo aquele acaso que não era por
acaso, que afinal os livrara, supunha, de uma enrascada maior.
VIII
em outro ponto previamente combinado, a poucos metros de onde o
encontrara antes, o rosto de Antum, que a viu voltando com a encomenda, expressou
um ar preocupado de interrogação. Ana devolveu-lhe a bolsa e contou o que tinha
acontecido. imediatamente, ele pegou o celular e enviou uma mensagem, depois
deu um sorriso largo e convidou-a para um café, dizendo que esperasse pelas instruções
seguintes, pois dali mesmo ela deveria ir até aquele senhor que fora preso e
libertá-lo.
àquela altura, já em pânico, Ana disse um não tão alto que o
assustou. primeiro tentou lembrá-lo que pelas normas ela jamais poderia
realizar outra tarefa vinda de um mesmo contato. depois argumentou que estava
deixando, naquele instante, qualquer missão, pois não tinha mais condições psicológicas
para prosseguir. Antum concordou sobre seu afastamento definitivo, mas, antes, lembrou-lhe de que se tratava da mesma tarefa e só ela poderia completá-la. seria mais
arriscado envolver outra pessoa da célula.
sem muita margem para outros argumentos, e crendo que estaria
livre após isso, ela concordou. logo ele recebeu a mensagem com as instruções
do que ela deveria fazer. despedindo-se, Antum lhe deu a mesma bolsa para ser
entregue de novo ao contato e, já prevendo sua pergunta, disse que dessa vez não
haveria problema, eles não seriam molestados nem interrogados e teriam segurança
garantida.
quando o partido afirmou que funcionava, não estava blefando,
ela deveria confiar. mesmo assim, Ana estava decidida que seria o último
incidente no qual iria participar.
IX
Hu se dirigira para outro posto de delegacia e estava preparado para intervir na libertação de um dos seus, mas vê-la novamente naquela situação tão inesperada o desconcertou. não é possível, pensou, todo aquele acaso não era por acaso! então ela também é uma das nossas? fazendo muito esforço para entender e conectar os pensamentos que lhe assaltavam a mente, por um momento supôs que tudo não passava de uma farsa, que fora uma armação do partido para colocá-los frente a frente, um encontro mais do que marcado. mas por que precisaria dessa volta imensa se o primeiro já havia acontecido naquele bar horas atrás? é muita loucura pensar que encaixariam outras múltiplas narrativas para que tudo parecesse natural. não, só um grande estrategista seria capaz de fazer ferver no caldeirão das probabilidades a fórmula exata para casar inúmeras incógnitas! isso não era obra do partido, com certeza. ou teriam mesmo tanto poder assim sobre os fatos e a vida das pessoas?
alheia a tudo e sem demonstrar sinais de ansiedade, Ana assinou o alvará que estava sobre a mesa do agente e fez um sinal positivo para o senhor grisalho, inclinando sua cabeça para a saída. Hu estendeu-lhe a mão num gesto formal e, sorrateiramente, enquanto fingia apertá-la em sinal de despedida, olhando-a firmemente nos olhos, entregou-lhe um pequeno papel dobrado, enquanto dizia que já estavam liberados.
X
afastados daquele lugar que cheirava a terror e medo, de tantas histórias de presos políticos que não voltaram mais a ver a luz do sol, ela finalmente entregou a bolsa para aquele senhor grisalho de comportamento imperturbável e nunca mais o viu.
o ponto final nesse livro de suspense deu origem a outro enredo que a capturou sem prólogos e legendas, sem deixar a opção da leitura que tinha intenção de fazer sobre si mesma.
Ana soube, desde aquele instante em que suas mãos se tocaram, que ela poderia escapar das tarefas secretas do partido que acabara de abandonar, mas não a de ceder ao desejo de voltar a encontrar aquele homem que sonhava ser o último de sua vida. a lembrança daquele vigoroso e penetrante olhar era o seu novo desafio e então ligou para o número que ele havia escrito no bilhete - início de um amor cheio de disputas, de muita raiva e tesão. perdas e vitórias.
seu romance passional com Hu, repleto de palavras que nomeavam o mais profano e lascivo que poderia constar na literatura amorosa pornográfica, cabia em um minidicionário compacto de bolso. foram exatos 365 dias de uma convivência sem fôlego, até aquele fatídico dia, marcado com um X na folhinha da agenda, em que ele arrombara a porta do banheiro para salvá-la de si mesma, já desfalecida em água e sangue jorrado de seu pulso. acompanhou-a pelo tempo em que ficara hospitalizada, mas depois veio o fim. Ana, frustrada em seu desejo de se despedir da própria vida, deu adeus para ele e mudou-se para outra cidade, sem deixar rastro. passaram-se os meses e veio a pandemia.
XI
agora ele estava ali na rua, olhando para ela debruçada na janela do sétimo andar, testando mais uma vez sua vulnerabilidade e prestes a fazê-la abortar a última chance de iniciar outra jornada fora desse mundo de turbulências, sem apegos e falsas promessas de amor de sua última relação tóxica, enquanto ela repetia o sinal afirmativo de que desceria para encontrá-lo, pensando em quem teria passado seu paradeiro.
XII
ao vê-lo ali tão próximo, Ana se esforçou para não demonstrar suas saudades.
em vez disso, perguntou com voz rouca e irada como ele havia descoberto seu
endereço.
frágil e
emocionado, Hu revelou naquele momento uma face que ela desconhecia. desculpando-se, baixou a guarda encobrindo aquela bravata de macho alfa enquanto minutos antes a ofendera aos gritos. devagar, aproximou-se e a envolveu em um abraço terno,
sem parar de chorar. depois retirou calmamente sua máscara e a beijou suave e
demoradamente nos lábios.
por um
tempo incontável, eles ficaram ali recebendo a chuva e trocando carícias de
outro tipo, diferente do que se acostumaram como adictos daqueles hormônios sexuais
de fazer perder a cabeça.
sem
palavras, ela o conduziu até o apartamento, onde despiram as roupas encharcadas
e se aqueceram com banho, cobertas e bebidas.
XIII
sentados de
frente um para o outro, Hu iniciou a fala. primeiro, ele havia chegado ali por ordem
do partido, que sempre soube de cada passo que ela deu, mesmo depois de ter abandonado
a missão. segundo, que o partido era também o responsável por vetar seu desejo
de imigrar, que ela confirmaria em breve pelo comunicado oficial que viria de
Andrômeda recusando seu formulário de pesquisa. por fim, que eles não eram mais
assunto de interesse do partido e estavam liberados de qualquer investigação.
muda e perplexa,
Ana se esforçou alguns instantes para entender a extensão daquela vigilância
sobre ela, relacionando as mensagens trazidas por HU com as evidências de que
sua vida, ou o que julgava lhe pertencer, de fato nunca esteve em suas próprias
mãos.
atento e em
silêncio, a face de Hu apenas expressava sinais afirmativos aos insights que
ela manifestava. depois, ambos foram repassando os episódios que se destacaram
no tempo em que estiveram juntos, esmiuçando cada detalhe de suas tarefas,
as coincidências que observaram desde o início em que foram contatados e o que poderia significar todo “aquele acaso que não era
por acaso” do encontro, agora sabidamente, predeterminado entre eles.
as suspeitas que ambos
se recusaram a enxergar no passado, como se fosse parte de um surto
conspiratório, agora se confirmavam nesse desfecho. sim, havia um plano no qual
o partido operava em um nível que não se tinha acesso e que os dois, por certo,
nunca puderam interferir. talvez fosse um projeto de criação de scripts muito
bem articulados para toda a humanidade, em que a pessoa encenasse um papel exclusivo
crendo ser esse o seu natural no drama da vida. talvez tudo fizesse parte de uma
agenda que deveria ser cumprida acima de qualquer interesse pessoal, cuja
compreensão não era simplesmente ordinária.
e assim eles foram,
nesse exercício de imaginação até o amanhecer.
XIV
Hu concluiu dizendo
que deixaria o cargo de agente na polícia. “sinto muito, Ana, por não ter conseguido enxergá-la
como é, fora de minhas... fora de minhas... projeções preconceituosas. eu ficarei aqui, se quiser. eu amo você.”
Ana pegou
a mochila que levaria para Andrômeda, abriu e mostrou a Hu o que ela considerava
como sua única bagagem dali em diante. agora, sua viagem era
uma busca solitária.
na despedida não houve
promessas nem datas para qualquer reencontro. ambos intuíram que deveriam
viver em sintonia com o seu próprio tempo.
mas por que o partido
deixara todas as pistas para que Hu e Ana confirmassem muitas de suas suspeitas
era uma pergunta sem resposta. quem sabe um dia virá a contestação de que o
perigo inerente ao livre arbítrio é inversamente proporcional a se estar muito próximo
da verdade.
virginia finzetto