o temperamento de Hu se parecia muito pouco com o de Ana. ele já havia entrado e saído de tantas seitas e escolas de autoconhecimento que era figura conhecida nos evidentes rastros em que a Via Láctea podia operar oficialmente. na última vez que deixou de seguir um desses atalhos, desiludido e dizendo a si mesmo que não se meteria em outra fria, entrou em um boteco de esquina e ali viu Ana, em sua singular beleza, por quem se apaixonou à primeira vista. ficou surpreso com sua reação, então disfarçou. de outra mesa um pouco afastada, sorvendo calmamente seu destilado preferido, Hu olhava de soslaio para aquela figura miúda, aparentemente frágil, segurando à sua frente um copo meio cheio de água mineral. calculou, pelo conteúdo da garrafa, que ela acabara de chegar. então, começou a espaçar mais entre um gole e outro, para dar tempo de acalmar seu coração. tirou um livro da mochila e inclinou-se fingindo interesse na leitura. nem completou um parágrafo, levantou a cabeça e viu que ela já não estava mais ali, apenas um copo vazio e a garrafa pela metade. de rompante, agora sem nenhum constrangimento, olhou em todas as direções e nada. nesse intervalo, Ana havia conferido uma mensagem no celular, levantara-se de súbito e, sem ser notada, saíra apressada para a rua.
na esquina próxima estava Antum, codinome do contato do partido, para lhe passar mais uma tarefa urgente. Ana pegou dele a bolsa e a colocou a tiracolo, sem perguntar sobre seu conteúdo. ambos trocaram um aperto de mão e se dirigiram rapidamente em direções opostas. apreensiva, com as mãos geladas, ela desceu a escadaria do metrô a passos rápidos. estava tão nervosa que não conseguia passar pela catraca, até se dar conta que estava entrando pela saída. como se sentia idiota em denunciar sua fragilidade ao tentar cumprir uma missão à qual jamais havia sido talhada, a não ser para provar a si mesma uma coragem que nunca tivera. lutava clandestinamente da mesma maneira que sobrevivia escondendo-se de si. aquilo já estava passando dos limites que podia suportar, pois esse medo começava a superar o pavor de enfrentar seus monstros internos. queria largar a encomenda em qualquer banco do vagão e abandonar aquela loucura. depois refletiu e se convenceu de que colocaria em jogo a vida de outras pessoas, mas jurou que esse seria o último episódio de sua missão. cinco estações à frente, desceu e logo avistou na plataforma o homem mais velho, com as características que foram passadas, a quem deveria entregar a encomenda. checaram as senhas, outro aperto de mão e Ana virou as costas. quanto menos soubesse, melhor seria para a segurança de ambos. só falhou na hora de seguir o combinado, que era voltar pelo mesmo trajeto. e foi nessa marcada que ela dançou.
não havia quase nada que não estivesse sob a vigilância sigilosa
da polícia política e de seus agentes. para eles, tudo poderia ser controlado
por meio de uma inteligência artificial com algoritmos de espionagem de última geração.
quando necessário, faziam um grampo direto na fonte. prisão e tortura somente
em último caso, já que o aparato funcionava de modo satisfatório quando o poder
se travestia de democracia. acontece que algumas organizações,
tendo estudado profundamente as articulações comuns praticadas sob a intervenção
da Via Láctea, também utilizavam métodos de infiltração na polícia, para tentar se defender
de possíveis ataques, disputando nesse cenário um complicado jogo não percebido
pelos cidadãos comuns, em geral entorpecidos pela rede de controle subliminar
das mídias cúmplices.
à parte, sustentado e dirigido por um sofisticado corpo de códigos secretos
- independentemente da ideologia que estivesse no poder – estava o “partido”,
que vinha atuando nos bastidores da história através dos séculos com uma
prática herdada de antigos ensinamentos de Andrômeda. aleatório como um
caleidoscópio associado a uma rigorosa combinação de gematria entre diversos sistemas
abjad, a verdade se ocultava em mensagens aparentemente tolas - muitas vezes em
ilustrações que incluíam piadas ou frases
de autoajuda atribuídas geralmente a falsos autores -, que eram passadas à luz
do dia, aos destinatários certos, por qualquer aplicativo telefônico ou pela
internet, sem levantarem suspeitas ou serem decifradas por quem não tinha o domínio da
técnica.
uma vez ciente e adepta da missão para a qual fora recrutada e
das regras básicas de como utilizar a decodificação que lhe competia, Ana ganhara a
função de conexão entre duas pontas - ambas sempre com falsas identidades e que não se
conheciam entre si. para isso, acessava as chaves que abriam apenas os códigos exatos
àquela tarefa, exclusiva, que jamais se repetia. Ana era um elo que não sabia
do antes nem do depois e sequer tinha ideia da extensão da corrente. funcionava
como uma peça única que, caso se partisse, encerraria informações desconexas em
si mesma.
ainda trêmula, Ana caminhou pela plataforma olhando o chão até avistar, em um canto, a bolsa que ela havia entregue e que, por astúcia e total obediência às normas de conduta do partido, fora poupada de ser levada com o seu contato pelos policiais. agachou-se e a recuperou, fechando os olhos aliviada. subiu rapidamente as escadas e tomou o metrô, dessa vez para o trajeto correto, pensando sobre o que poderia significar todo aquele acaso que não era por acaso, que afinal os livrara, supunha, de uma enrascada maior.
àquela altura, já em pânico, Ana disse um não tão alto que o assustou. primeiro tentou lembrá-lo que pelas normas ela jamais poderia realizar outra tarefa vinda de um mesmo contato. depois argumentou que estava deixando, naquele instante, qualquer missão, pois não tinha mais condições psicológicas para prosseguir. Antum concordou sobre seu afastamento definitivo, mas, antes, lembrou-lhe de que se tratava da mesma tarefa e só ela poderia completá-la. seria mais arriscado envolver outra pessoa da célula.
sem muita margem para outros argumentos, e crendo que estaria
livre após isso, ela concordou. logo ele recebeu a mensagem com as instruções
do que ela deveria fazer. despedindo-se, Antum lhe deu a mesma bolsa para ser
entregue de novo ao contato e, já prevendo sua pergunta, disse que dessa vez não
haveria problema, eles não seriam molestados nem interrogados e teriam segurança
garantida.
quando o partido afirmou que funcionava, não estava blefando,
ela deveria confiar. mesmo assim, Ana estava decidida que seria o último
incidente no qual iria participar.
IX
Hu se dirigira para outro posto de delegacia e estava preparado para intervir na libertação de um dos seus, mas vê-la novamente naquela situação tão inesperada o desconcertou. não é possível, pensou, todo aquele acaso não era por acaso! então ela também é uma das nossas? fazendo muito esforço para entender e conectar os pensamentos que lhe assaltavam a mente, por um momento supôs que tudo não passava de uma farsa, que fora uma armação do partido para colocá-los frente a frente, um encontro mais do que marcado. mas por que precisaria dessa volta imensa se o primeiro já havia acontecido naquele bar horas atrás? é muita loucura pensar que encaixariam outras múltiplas narrativas para que tudo parecesse natural. não, só um grande estrategista seria capaz de fazer ferver no caldeirão das probabilidades a fórmula exata para casar inúmeras incógnitas! isso não era obra do partido, com certeza. ou teriam mesmo tanto poder assim sobre os fatos e a vida das pessoas?
alheia a tudo e sem demonstrar sinais de ansiedade, Ana assinou o alvará que estava sobre a mesa do agente e fez um sinal positivo para o senhor grisalho, inclinando sua cabeça para a saída. Hu estendeu-lhe a mão num gesto formal e, sorrateiramente, enquanto fingia apertá-la em sinal de despedida, olhando-a firmemente nos olhos, entregou-lhe um pequeno papel dobrado, enquanto dizia que já estavam liberados.
X
o ponto final nesse livro de suspense deu origem a outro enredo que a capturou sem prólogos e legendas, sem deixar a opção da leitura que tinha intenção de fazer sobre si mesma.
XII
ao vê-lo ali tão próximo, Ana se esforçou para não demonstrar suas saudades. em vez disso, perguntou com voz rouca e irada como ele havia descoberto seu endereço.
frágil e
emocionado, Hu revelou naquele momento uma face que ela desconhecia. desculpando-se, baixou a guarda encobrindo aquela bravata de macho alfa enquanto minutos antes a ofendera aos gritos. devagar, aproximou-se e a envolveu em um abraço terno,
sem parar de chorar. depois retirou calmamente sua máscara e a beijou suave e
demoradamente nos lábios.
por um
tempo incontável, eles ficaram ali recebendo a chuva e trocando carícias de
outro tipo, diferente do que se acostumaram como adictos daqueles hormônios sexuais
de fazer perder a cabeça.
sem
palavras, ela o conduziu até o apartamento, onde despiram as roupas encharcadas
e se aqueceram com banho, cobertas e bebidas.
XIII
sentados de frente um para o outro, Hu iniciou a fala. primeiro, ele havia chegado ali por ordem do partido, que sempre soube de cada passo que ela deu, mesmo depois de ter abandonado a missão. segundo, que o partido era também o responsável por vetar seu desejo de imigrar, que ela confirmaria em breve pelo comunicado oficial que viria de Andrômeda recusando seu formulário de pesquisa. por fim, que eles não eram mais assunto de interesse do partido e estavam liberados de qualquer investigação.
muda e perplexa,
Ana se esforçou alguns instantes para entender a extensão daquela vigilância
sobre ela, relacionando as mensagens trazidas por HU com as evidências de que
sua vida, ou o que julgava lhe pertencer, de fato nunca esteve em suas próprias
mãos.
atento e em
silêncio, a face de Hu apenas expressava sinais afirmativos aos insights que
ela manifestava. depois, ambos foram repassando os episódios que se destacaram
no tempo em que estiveram juntos, esmiuçando cada detalhe de suas tarefas,
as coincidências que observaram desde o início em que foram contatados e o que poderia significar todo “aquele acaso que não era
por acaso” do encontro, agora sabidamente, predeterminado entre eles.
as suspeitas que ambos se recusaram a enxergar no passado, como se fosse parte de um surto conspiratório, agora se confirmavam nesse desfecho. sim, havia um plano no qual o partido operava em um nível que não se tinha acesso e que os dois, por certo, nunca puderam interferir. talvez fosse um projeto de criação de scripts muito bem articulados para toda a humanidade, em que a pessoa encenasse um papel exclusivo crendo ser esse o seu natural no drama da vida. talvez tudo fizesse parte de uma agenda que deveria ser cumprida acima de qualquer interesse pessoal, cuja compreensão não era simplesmente ordinária.
e assim eles foram,
nesse exercício de imaginação até o amanhecer.
XIV
Hu concluiu dizendo
que deixaria o cargo de agente na polícia. “sinto muito, Ana, por não ter conseguido enxergá-la
como é, fora de minhas... fora de minhas... projeções preconceituosas. eu ficarei aqui, se quiser. eu amo você.”
Ana pegou
a mochila que levaria para Andrômeda, abriu e mostrou a Hu o que ela considerava
como sua única bagagem dali em diante.
na despedida não houve
promessas nem datas para qualquer reencontro. ambos intuíram que deveriam
viver em sintonia com o seu próprio tempo.
mas por que o partido deixara todas as pistas para que Hu e Ana confirmassem muitas de suas suspeitas era uma pergunta sem resposta. quem sabe um dia virá a contestação de que o perigo inerente ao livre arbítrio é inversamente proporcional a se estar muito próximo da verdade.
Muito bom.
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