sábado, 19 de março de 2016

O SILÊNCIO DOS ANJOS

ele ou ela era assim. pairava. até a definição do gênero era difícil, porque queria ser neutro em tudo. desde pequeno na escola deixava de comer na cantina, porque fatalmente deveria pronunciar um nome e isso já era uma escolha. e ele ou ela não conseguia, estava além de seus princípios, julgava-se acima disso. síndrome de anjo, que difícil. deveria servir a quem? aos homens? mas e esse corpo? e essa alma? e esses desejos loucos? eu sou humano, ó dó! só haveria um jeito de resolver isso: morrer, já que havia nascido. nascido aqui, onde cada passo é uma escolha, um lado, um compromisso. 

virginia finzetto

quarta-feira, 16 de março de 2016

BIOGRAFIA


ÍNTIM[AÇÃO]

havia tanto assunto ainda para falar. mas ela preferiu se sentar na varanda e deixá-lo ir. a poeira da estrada levantada pelos pneus da van que partiu apressada chegou e se misturou às suas lágrimas -- rompantes do engasgo da frustração que lhe subiu aos olhos -- agora vertendo avermelhadas. não foi fácil deixá-lo ir. não era o que ela queria. leve de menos, desproporcional demais, torto o bastante. queria encrenca. essa felicidade morna dos dias decorados de cor e salteado nunca estivera em seus planos. quando ela viu, após algumas horas, a poeira de novo aumentando e o vulto se aproximando, ainda pensou em uma chance, mínima. mas ele voltou, esticou a mão e ela assinou, dessa vez sem reclamar. afinal, a pena, o papel, o tranco e o trabuco convencem qualquer mulher a abandonar uma ilusãozinha besta. 

virginia finzetto

DEUS E O DIABO ÀS GARGALHADAS


quarta-feira, 9 de março de 2016

CRENÇAS

hoje o armário não quis fechar de jeito nenhum. a mínima dose de coragem deixou uma fresta aberta e por ali vi o lote de crenças penduradas. encarei parte delas, as mais usadas que, de tão usadas, viraram hábitos [e aí eu entendi o provérbio 'o hábito faz o monge']. vi todas acompanhadas de açoites e vendas, grandes formas usadas pelo capitão do mato para destronar o rei. peguei uma delas, tirei-a do cabide e a deixei sobre a mesa. como eu pude acreditar por tanto tempo a ponto de achar que bastava não usá-la mais para eu me livrar de seu assédio? deixei que ela voltasse para o armário, já destituída de seu domínio, para, assim, contaminar o lote inteiro por meio de vasos comunicantes. 

virginia finzetto

terça-feira, 8 de março de 2016

BINAH - HOCKMAH

sua vaidade exposta era fruto lascivo de uma paixão recolhida. mendicava alta tensão em toda rede com o intuito de se abastecer, mas provava somente de energia artificial. era mais sugada do que previa. de súbito, deu-se conta da beleza que dispensa trampolim. fez o mergulho que a levou às alturas, lugar onde fica a fonte luminosa de raios que não servem para acender fogo. raios frios que derretem a espessa camada de gelo sem queimar. e todo o processo se realizou a contento, provando ser próprio das mulheres a sabedoria e o entendimento. 

virginia finzetto

segunda-feira, 7 de março de 2016

FÊNIX

estranho seria se não houvesse a própria morte para os que estão no topo da cadeia alimentar. até estes serão comidos, mesmo que tardiamente, pelos vermes ou urubus no cumprimento de suas não condecoradas, porém honradas, tarefas de saneadores básicos da natureza. mas não a mitológica ave fênix, que se auto crema e ressuscita de suas cinzas, pois a ela coube a sentença de nunca perecer para sempre, engatando um no outro longos períodos de vida. ou seremos mortos ou seremos ressuscitados ou ambos em diferentes planos de realidade. mas não ter ninguém para me comer exatamente agora é o fim da picada. 

virginia finzetto