domingo, 19 de novembro de 2017

APREÇO

apreciar, ato raro. não sinto em nenhum de seus sinônimos a poesia cadenciada que exala desse verbo que rebola bola sensualmente. não se trata de botar reparo, muito menos de manifestar arroubos. na mesma calçada, de mãos dadas, andam juntas paz e serenidade. apreciar é a musa do ócio criativo, seu caso de amor mais antigo. do contrário seria apenas leitura dinâmica, passar de olhos. apreciar é agarrar com as mãos ávidas uma grande foda sem hora marcada, penetrando todos os poros do deleite.


virginia finzetto

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

IN EXTREMIS, IN AETERNUM *

Às vezes me pego esperando por algo que precisa acontecer para que outro acontecimento aconteça. É como se houvesse a necessidade tácita de um antes nos bastidores dos atos. Uma antecâmara de cada cena manipulando-as como marionetes para a plateia sempre adormecida.
Seguir o ritmo de um marcador de tempo, como no compasso de um marca-passo, no número de giros da corda mecânica da caixinha de música, no intervalo de cada clique do interruptor de luz…  Nos instantes em que estamos ausentes, onde estamos?
Seria esse gap proposital para que o ser desperto se dê conta do significado da pura espontaneidade? Esta que é a naturalmente responsável pela condução da vida de toda a criação que não a humanidade.
No momento em que o avião inicia sua decolagem, não resta outra opção além da minha entrega para que vingue o voo. Para o curso planejado não pode haver dúvidas.  Qualquer vacilo, gagueira, espirro pode virar o fracasso do espetáculo.

“— Pode-se continuar morrendo pela eternidade…”

Pode-se continuar vivendo na vacuidade.
Pode-se perpetuar alheio a cada golfada de ar a preencher os pulmões.
Pode-se fingir atenção em cada distração.
Pode-se permanecer disperso em qualquer concentração.
Preso a algum ponto da esfera, percebe-se singularmente esse intervalo feito de números, calendários, metas, morais, regras, crenças convencido de que se pertence a algum diâmetro ou raio em particular.
Viver é um verbo que só pode ter sido inventado por algum prestidigitador, nome difícil até de pronunciar. Morre-se desde que se nasce, perpetuamente.  Só.
virginia finzetto
* Nos últimos momentos da vida, eternamente.
publicado na COLUNA PLURAL (scenariumplural.wordpress.com) em 9/11/2017

domingo, 5 de novembro de 2017

BISCATE

no meu ramo
há negócios
frutíferos

faço cílios
postiços
de papel crepom
para faróis de carro

enfeito a vida
e ganho o pão
com quebra-galhos

virginia finzetto

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

VEREDAS

aos poucos, a inspiração vai abrindo uma vereda no matagal do esquecimento. adiante, há um princípio de incêndio, ateado pela ignorância, que não se deve debelar com lágrimas. ingenuidade concluir que tudo possa ser eliminado com lisuras. a passos firmes aproxima-se do alvo para pisar com firmeza no núcleo dessa rebelião preguiçosa. o que poderia fazer o capitão umbigo contra o general de todos os poros? acaba de ser cooptado. 

virginia finzetto

terça-feira, 31 de outubro de 2017

A REFORMA DO ANO

de janeiro a fevereiro
abriu vaga no puteiro

em março
perdeu o cabaço

em abril
farejou o covil
abriu as pernas

maio junho julho
abriu mão da carteira
de trabalho

em agosto
assumiu o posto
promovido
a capitão do mato

setembro outubro
novembro dezembro
amputou cada membro

no réveillon
matou seu cérebro


virginia finzetto

poema sujeito a reformas...

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

TÓXICO

rastros que vi no céu
não são de incontinência de anjo
nem de pó de pirlimpimpim,
aceno de pomba da paz
ou de avião supersônico

eles hipnotizam humanos
que seguem para o matadouro
é rebanho infectado

toca gado... tô cagado!

virginia finzetto

TERMOS

tem sido assim, eu meio tímida tentando afagar as palavras enquanto elas fogem de mim. reunidas em pequenos grupos, elas me espreitam de longe. vejo o risinho sarcástico de algumas, as lágrimas que molham a serifa de outras. o disfarce das mais queridas misturando fontes e tamanhos para dificultar minha escolha. o que mais dói é enxergar a sentença formada pelas minhas prediletas, acenando recadinhos de sarcasmo e de deboche. apenas as de baixo calão ficam aos montes, insinuando-se em desfile, dando-se de graça, aproveitando a ocasião em que são usadas em massa por quem as colocou nessa situação. olho para elas com desânimo. saber que até essa fama é efêmera, pois a cada dia elas estão mais presas à cadeia banal de significados. torço para que o alfabeto se organize e faça uma revolução. 

virginia finzetto