segunda-feira, 18 de junho de 2018

AVE, LOUCAS NOITES!

No quesito visão, as aves de rapina estão no topo da excelência e, nessa espécie, quando se trata de enxergar na escuridão, destaca-se a coruja. Seus olhos de telescópio aproximam qualquer alvo, mesmo em noites sem luar.
   — Ah, que inveja desses irmãos!

  Hoje, com minha visão deficiente, não aprecio ambientes de pouca luz.
   Mas sempre foi assim?

   — Claro que não!
  Quando criança, eu identificava pé de maracujá nascendo em mata fechada a muitos metros de distância. E à noite, quando me deitava na rua de terra sem movimento de carros e nenhuma iluminação, era capaz de acompanhar extasiada a elíptica dos planetas visíveis a olho nu subindo e descendo no horizonte, tendo ao fundo o braço nebuloso da via Láctea atravessando as constelações.
  Sentia uma especial sintonia com o entardecer e a existência na escuridão. Depois que o sol se punha, em mim se abria um mundo de sensações misteriosas, que nasciam com o silenciar do dia. Criaturas noturnas vinham me fazer companhia, mas logo se recolhiam, bem antes da meia-noite. Era o cansaço das brincadeiras diurnas que vinha render meu corpo, pois durante a semana eu tinha de ir à escola logo ao raiar do dia.
 Minha atração pela madrugada e a capacidade em me manter acordada crescia proporcionalmente à minha idade. No auge da juventude, era capaz de virar noites seguidas. Passeios noturnos à Cidade Universitária ou ao Parque do Ibirapuera eram frequentes, durante os quais acabávamos adormecidos em cama fofa de folhas secas quando chegava a manhãzinha. Contrapondo-se a esses momentos de silêncio, revezavam-se as noitadas nos botecos boêmios, os “sem porta”, assim chamados por não terem horário para fechar.
 No entanto, com o outono da vida, sinto que estou voltando a ser menina. Das corujas quero apenas a sabedoria, já que hoje adormeço e acordo mesmo é com as galinhas.

virginia finzetto


[crônica, revista Scenarium Plural, Wild NIghts, homenageando Emily Dickinson, 2017]

quinta-feira, 14 de junho de 2018

13 DE JUNHO

querido antônio, não fostes santo à toa. que idiotice a minha ficar te amolando por longos 12 anos. essa coisa de virar tua imagem de ponta-cabeça com objetivos tão falsos, chamar de simpatia a uma tortura dessas, atribuir à tua graça meu vexame de não ter sequer empatia com uma causa já sabida desde sempre como capricho no mau sentido, como uma birra. sabe, querido, ontem resolvi desenterrar todos os bonecos de gesso à tua imagem e algumas semelhanças. é que a cada ano eu adquiria um deles em lugares diferentes. hoje, com orgulho, exibo minha coleção sem ter repetido um sequer. penso que ela deva valer uma nota no mercado livre. o modelo 2018 nem cheguei a virá-lo. coloquei-o sobre a mesa e, juntos, tomamos esta decisão: 12 apóstolos, 12 meses, 12 anos, 12 signos, 12 casas do zodíaco... finalmente, percorri a roda, um ciclo inteiro, e sobrevivi feliz, sem me casar. obrigada, isso sim é que é milagre! 

virginia finzetto

domingo, 3 de junho de 2018

NECROTÉRIO



não quero mais ficar aqui, respirando esta atmosfera. Ana caminhou lentamente com sua bolsa à tiracolo até a saída daquele necrotério. todos ali estavam mortos e petrificados em estátuas sem autorias. deixando para trás, identificara e etiquetara cada cadáver de si mesma. sua alma congelada era um escudo para evitar que seu coração se liquefizesse, como a torre que protegeu a rainha naquele último jogo de xadrez em que tentou a sorte. agora não poderia mais fingir que não tinha conhecimento dos abusos, das respostas atravessadas que dera sem pensar, dos minutos que poderia ter ofertado para ouvir atentamente o pedido de socorro tão profundamente calado naquele olhar. fora leviana querendo promulgar conselhos, fórmulas, qualquer veredito a quem só pedia um abraço.


virginia finzetto

GENUFLEXÓRIO

chega, contaram só mentiras. você não virá "numa manhã de domingo". no dia do seu culto eu vou abrir a porteira para as ovelhas pastarem livres no campo em companhia de um border collie, deveras mais fiel que esse pastoreco de presépio. de seu templo de ouro escorre sangue da vitimização dos escravos cegos pela trilha da mesma fumaça nos céus que saem destes incensórios. sofrimento algum conduz ao Reino. pare de me importunar com suas crendices. me deixa arder do cadinho do inferno, meu batismo é de fogo. Ana, limpando as lágrimas, se esforçava para levantar seu corpo dormente, quando avistou uma carteira perdida no vão do genuflexório.

virginia finzetto

sábado, 26 de maio de 2018

DAS CORES QUE NÃO ME REPRESENTAM MAIS

preciso de um par de chinelo 
vi no super um verde e amarelo
e quase vomitei... 
tenho mais coragem não 
de usar essa merda
mancharam as cores da bandeira
com sangue de inocentes
e da miséria que deixaram
torça para a Copa e vá você 
tomar no seu baixo refrão
quero o meu país de volta,
seu ladrão!

virginia finzetto

quarta-feira, 16 de maio de 2018

ARECIBO E ATACAMA

não estava certa de uma causa para subir no ponto mais alto e isolado do edifício e conseguir se concentrar. pensava que talvez fosse como as antenas, parte de um "seti", conectando-se ao cosmos em busca de novos pulsares da "alma" na aridez de seu deserto. uma ilha no salar e lá estava ela a fustigar reminiscências. lembrou de sua declaração de amor à lhama e seu riso frouxo ao receber uma cusparada como resposta. nem sempre riu quando foi frequentemente assim tratada pelos humanos. agora não fazia nenhuma diferença. de fato, não atraía mais corretivos desse tipo para suas fraquezas. trocou correntes e âncoras por balões de hélio. transmutou rancores em vapores. e sua nau atravessou o espaço ao som dos espasmos internos, no compasso da dança entre fluidos e gases... 

virginia finzetto

quarta-feira, 9 de maio de 2018

MEDITERRÂNEO

às vésperas de seu retorno à Gibraltar, caiu um atípico e intenso temporal no lado marroquino do mediterrâneo. o fato soou como um aviso dos deuses à decisão de Ana em abandonar suas buscas por Juan. da janela do quarto da modesta pensão, ficou imaginando como seria se tivesse que passar pela experiência de viver prisioneira. não bastava ter que se conformar como hóspede de um corpo, uma reclusão forçada seria uma violência contra sua alma que tanto lutara para aprender a ser livre. a noite se aproximava e nenhuma notícia de que o clima adverso poderia se acalmar em breve. todos os ferries estavam suspensos. resignou-se em se espelhar no exemplo daquela água que escorria pela vidraça, moldando de várias formas sua existência entre o céu e a terra, aceitando ser o que era naquele momento. logo se distraiu pensando sobre as coisas fora de uma ordem lógica como era a espanha marroquina e a inglaterra andaluza. acendeu a luz do abajur e voltou a fazer suas anotações sobre a ponte traçada entre os dois destinos, sem adivinhar a surpresa que iria ter no jantar... 

virginia finzetto