domingo, 14 de junho de 2020

A ETERNIDADE DOS INSTANTES

— Quando foi inventado o tempo? 

A pergunta inocente de Ana caiu como luva para a costumeira algazarra em sala de aula. Foi o primeiro bullying coletivo que sofreu na vida. Todos os dias, era uma chacota que tentava esmagar um aluno mais tímido, até vê-lo como tomate pisado no chão, sangrando de vergonha. A dinâmica sempre partia de um núcleo de garotos maldosos e ia aglutinando a maioria da classe, que, por contágio e num crescente, ia às gargalhadas, enquanto a vítima se via diminuindo na carteira, desconcertada pela humilhação. 

Sem demonstrarem nenhum riso, as fiéis amigas Norma e Bel. A professora, exaltada, pediu ordem, mas não conseguiu interromper a baderna descontrolada. 

Enquanto isso, como defesa, Ana encontrara refúgio em suas lembranças do dia anterior, no qual o riso solto não era de deboche, mas de alegria de um domingo ensolarado de brincadeiras de rua. Vieram-lhe as imagens do sorteio de chiniqueiro livre para decidir quem iria bater a latinha. Depois, a escolha do perímetro até onde todos poderiam se esconder. Enquanto acontecia a contagem regressiva, todos dispararam em busca do melhor esconderijo. E, cada vez que o batedor conseguia encontrar uma boa parte dos escondidos, uma criança mais esperta corria na frente, chutava a latinha e salvava todo mundo. E o esconde-esconde ia longe.

Já começava anoitecer, quando a turma exausta se deitara na calçada para olhar o céu e as estrelas. E aí alguém notara a falta dela. Encontraram-na adormecida dentro de uma velha casinha de cachorro abandonada no quintal do vizinho. Ela havia batido o recorde de sumiço por dez horas! Essa aventura lhe trouxera a vitória e a o bônus de não ser a batedora por três rodadas.

Quando Ana voltou de seu devaneio, a sala já estava em silêncio. A única voz era a da professora, muito brava, que, sentindo-se desacatada, pedia uma pesquisa, valendo nota, sobre a pergunta que Ana fizera, motivo de tanta piada.

virginia finzetto

[in Coletânea de Prosa, Mulherio das Letras, 2017]

sábado, 13 de junho de 2020

SINESTESIA

no balcão da cafeteria, todos os dias, ela ficava ali por horas. os baristas olhavam-na com a impaciência do "vai querer o quê, dona?", as baristas, mais simpáticas, do "já fez o seu pedido?" . ela dava sempre a mesma resposta: "nada". assim que a porta da entrada se abria, todos se entreolhavam em risinhos de deboches do "lá vem a louca". quando a fofoca ganhou os ouvidos da gerência, veio a resposta que "a moça sempre deixa dez pagos". nos dias em que sua ausência era notada, eles não eram os mesmos. tropeçavam entre si, sem assunto, servindo aos afobados que se apinhavam disputando o seu primeiro. semanas, meses, e nada. acabaram se esquecendo dela, que apreciava apenas o aroma do café. souberam que ela ficara satisfeita com a experiência e que agora frequentava os pontos de fabricação e torra, insistindo para que a deixassem tocar nos grãos e no pó. 

virginia finzetto

quinta-feira, 11 de junho de 2020

MAIS DO MESMO

Na sala, Nicinha tricotava quando, de um pulo, a gata fez a bola de lã rolar de sua mão até a porta da saída. Ali, sua filha se agachou para pegá-lo.
Enquanto enrolava o fio ao redor da meada, Alice lembrou do sonho de viver com o marido em outro país. Às vésperas de partirem, frustrados pela pandemia, sem casa e sem emprego, abortaram os planos e foram morar com sua mãe.

− Estou atrasada! – despediu-se, entregando-lhe o novelo.

Lá fora, após salvar vidas primeiro, o mundo atordoado e desperto do coma induzido tenta ressuscitar o velho modelo da economia.


A vacina que não virá tão cedo é mais uma questão para a ciência resolver.

Pela sobrevivência, muitos viram na crise a chance de quebrar paradigmas, de mudar de cidade e de vida.

Alice, não, foi tentar uma recolocação no escasso mercado de trabalho.

O futuro a assusta, mas é um alívio que o importante para ela estava preservado.

Aprendeu a aceitar imprevistos e a fracionar seus medos, vivendo um dia de cada vez.



virginia finzetto

domingo, 24 de maio de 2020

FRIDA É INSPIRAÇÃO

Lembrei deste ensaio que fiz durante as aulas de desenho, quando ainda estava em Atibaia. Me deu saudades de tudo, inclusive da visita à Casa Azul, em 1996.

Desenho inspirado em uma foto de Frida Kahlo (lápis HB6, lápis de cor Othello (uns exemplares que comprei na Espanha há 30 anos...rs) e colagem de flores de chitão), em 2014.



BOLA DE CRISTAL

clarividência é ver reprises
pular sobressaltos
viver de antecipações

virginia finzetto

MEDIDA PROFILÁTICA


quando veio a praga
conspiraram ser um negócio da china,
ainda um misterioso país distante
no imaginário do povo analógico,
esse que agora se priva de abastecer desejos
de quinquilharias trazidas de lá em contêineres
e vendidas em camelôs

de novo, vê-se a religião a se divorciar da ciência
e essa mesma gente, que também não acreditou
ter o homem pisado na lua, agora quer ganhar as ruas

pobres mortais, contaminados fundamentalistas
matam a si mesmos e aos seus com a ignorância,
mas de dentro de minhas células femininas
versos intuitivos só permitem a verdade
do resguardo em bastante companhia
e o vírus, sem chance, morre na praia
por não ter onde ancorar nesse mar de poesia

virginia finzetto

[in Antologia Digital Ser MulherArte, maio de 2020]

segunda-feira, 11 de maio de 2020

VÍRUS VIROU

um vírus do avesso no mundo 
deixou todos para dentro 
com a coroa de espinhos na cabeça 
e nada nas mãos

virginia finzetto