— Quando foi inventado o tempo?
A pergunta inocente de Ana caiu como luva para a costumeira algazarra em sala de aula. Foi o primeiro bullying coletivo que sofreu na vida. Todos os dias, era uma chacota que tentava esmagar um aluno mais tímido, até vê-lo como tomate pisado no chão, sangrando de vergonha. A dinâmica sempre partia de um núcleo de garotos maldosos e ia aglutinando a maioria da classe, que, por contágio e num crescente, ia às gargalhadas, enquanto a vítima se via diminuindo na carteira, desconcertada pela humilhação.
Sem demonstrarem nenhum riso, as fiéis amigas Norma e Bel. A professora, exaltada, pediu ordem, mas não conseguiu interromper a baderna descontrolada.
Enquanto isso, como defesa, Ana encontrara refúgio em suas lembranças do dia anterior, no qual o riso solto não era de deboche, mas de alegria de um domingo ensolarado de brincadeiras de rua. Vieram-lhe as imagens do sorteio de chiniqueiro livre para decidir quem iria bater a latinha. Depois, a escolha do perímetro até onde todos poderiam se esconder. Enquanto acontecia a contagem regressiva, todos dispararam em busca do melhor esconderijo. E, cada vez que o batedor conseguia encontrar uma boa parte dos escondidos, uma criança mais esperta corria na frente, chutava a latinha e salvava todo mundo. E o esconde-esconde ia longe.
Já começava anoitecer, quando a turma exausta se deitara na calçada para olhar o céu e as estrelas. E aí alguém notara a falta dela. Encontraram-na adormecida dentro de uma velha casinha de cachorro abandonada no quintal do vizinho. Ela havia batido o recorde de sumiço por dez horas! Essa aventura lhe trouxera a vitória e a o bônus de não ser a batedora por três rodadas.
Quando Ana voltou de seu devaneio, a sala já estava em silêncio. A única voz era a da professora, muito brava, que, sentindo-se desacatada, pedia uma pesquisa, valendo nota, sobre a pergunta que Ana fizera, motivo de tanta piada.
virginia finzetto
[in Coletânea de Prosa, Mulherio das Letras, 2017]
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