quinta-feira, 3 de setembro de 2020

PRESENTE

me peguei olhando detalhes 
como se eu voltasse a ser 
a aluna disciplinada e atenta à vida. 
será que assim a morte me esquece?

virginia finzetto

domingo, 30 de agosto de 2020

PANTANAL

é como na guerra. agora nossa vida é prisioneira de uma situação que só conhecíamos dos livros que não foram decifrados a tempo, não há graduação para aprender a dor. essa dor que não entende o porquê do início, e que assim segue atropelando qualquer entendimento pela razão para se instalar como doença autoimune da alma escondida em cada corpo. os que sabem o que praticam seguem impunes. é como o mundo de imagens lindas que conhecíamos de uma revista, que agora arde diante da impotência dos nossos olhos na fogueira que vai enrugando e transformando suas páginas em cinza, pó, vítima de uma crueldade inimaginável. mas é mais um dos episódios que a banalidade, ávida de novas manchetes de frisson, não nos deixa tempo para as despedidas, pantanal. é a própria guerra.


virginia finzetto

sábado, 29 de agosto de 2020

terça-feira, 25 de agosto de 2020

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

PLASMA

buracos de minhoca
unem as células cósmicas
por onde circula o plasma da criação e,
em dia de tempestade na Terra,
as veias dilatadas dos raios no céu
mostram a face de um deus
com sangue nos olhos
prestes a derramar suas ordens,
para alguns ira e fúria,
para outros, alimentos
em gotas de inúmeras
interpretações

de toda a vida no planeta,
a natureza e os de acordo agradecem

virginia finzetto

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

DAS 10, A MENTIRA MAIS VALIOSA DA MINHA VIDA!

Era maio de 82, eu tinha uma Brasília amarela. Naquela tarde, eu estacionei em uma vaga na rua, bem em frente a uma casa lotérica, fui fazer compras e, na volta, resolvi entrar para fazer um joguinho, antes de ir embora. Saí e lembrei que havia me esquecido de comprar frutas e tinha um mercadinho bem perto dali. Então, abri o carro, joguei as sacolas dentro e, nessas de correria, larguei o bilhete e o troco dentro de uma delas. Depois de meia-hora, eu volto cheia de novas sacolas quando noto que as outras não estavam mais ali. Cacete!... na pressa, eu esquecera também de trancar o carro, pensei. Fiquei muito triste com o roubo, mas entrei no veículo e fui em frente. Já lá em cima, antes de eu virar para entrar na minha rua, vi um sujeito agachado na calçada vasculhando umas sacolas, que, imediatamente, reconheci como sendo as minhas. Quase dei um cavalo de pau ao frear e acabei estacionando no meio da rua. Desci aos berros, chamando o cara de todos os palavrões. Nesse mesmo instante, vinha subindo a polícia com a sirene acionada. O cara, sentindo-se ameaçado, conseguiu fugir correndo, como quem sai catando coquinho no chão, largando tudo pra trás. Eu fiquei muito feliz com a sorte de ter recuperado minhas compras e, quando me viro em direção ao meu carro, vejo a viatura da polícia queimando os quatro pneus na freada bem em cima da minha Brasília. Largo tudo e coloco as mãos na cabeça, ao ver descendo os dois policiais com suas armas apontadas para mim. O susto foi tão grande que quase desfaleço, porque, se eles tivessem amassado minha caranga, eu teria que arcar com aquele preju sozinha. Aí um deles, de praxe, pediu minha habilitação e os documentos do carro, eu entreguei tudo e, depois de constatarem o equívoco, eles me liberaram. Entro no carro e fico alguns minutos recuperando meus sentidos. Fui embora com o coração ainda disparado de tanta emoção. Uns metros mais adiante, eu vejo a polícia, a mesma que havia me abordado, apontando armas agora para um sujeito, o mesmo que havia me roubado! Ele com as mãos na cabeça e, ao seu lado, uma sacola no chão. Ahhhhh, pensei, maldito bandido, conseguiu fugir levando uma de minhas compras! Imediatamente parei o carro e fui lá tirar satisfação. Os policiais, reconhecendo a Brasília amarela começaram a discutir entre si, ora apontando a arma para o bandido, ora apontando-a para mim, porque desconfiaram que EU fosse cúmplice do larápio. Depois de muitas explicações, consegui convencê-los de que EU era a vítima e que havia parado ali exatamente para recuperar o resto das minhas compras, ou seja, a sacolinha que estava ali bonitinha no chão.


Resumo da ópera: das 10 sacolas de compra, NAQUELA estava o bilhete de loteria ainda com o troco!
No dia seguinte saiu o resultado, e eu havia feito a quina sozinha.
Quase enfartei! Demorei muito a me recuperar do susto. Perdi o sono, já não comia mais, tamanha a ansiedade e o temor que tomaram meu corpo e minha alma. Durante um tempão, eu fiquei com o bilhete, olhando toda hora para ele, conferindo os números com o recorte do jornal com o resultado e guardando-o em um lugar seguro. Repetia o ritual quase que diariamente, só pensando no que eu deveria fazer.
O prêmio era muito alto, iria mudar radicalmente minha vida. E eu me perguntava se estava preparada para aquilo. Até que um dia, decidi ir resgatar o prêmio, assim de supetão, como quem não quer nada.
Estacionei minha Brasília amarela bem em frente à Caixa Econômica Federal, desci firme e resoluta, com a bolsa à tiracolo, quando, ao olhar para a esquerda, vejo um sujeito se aproximando a passos largos em minha direção.
Mas, assim que eu o reconheci como sendo o mesmo ladrão, aquele que havia roubado minhas compras há meses, as sacolas que estavam no meu carro, ele deu um puxão na minha bolsa e fugiu com ela em disparada.
Nessa hora, não havia nenhum policial por perto, não havia nenhuma viatura em alta velocidade e não houve nenhum déjà vu. Só o meu coração colapsou e eu nunca mais me recuperei desse episódio.
Moral real desse conto de ficção: um raio não cai no mesmo lugar, mas pode infernizar a vida de uma mesma pessoa por várias encarnações.

virginia finzetto


republicação do conto de 27 de abril de 2017

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ANDRÔMEDA

I

quantos clichês você coleciona para explicar a saída para o caos do mundo? quantos desses foram comprovadamente eficazes na sua vida? Ana não pestanejou nas respostas e concluiu o formulário de pesquisa para imigrar para Andrômeda, não a galáxia, embora não deixasse de sê-la, se comparada com a distância astronômica que esta queria manter da humanidade normal, segundo seu estatuto, mas uma comunidade cujo endereço era sigilo até para quem se candidatava. e assim, de olhos fechados, ela apostava que a felicidade estaria fora. arrumou sua mochila com poucos pertences pessoais, algumas fotos para recordar o passado, quando se sentisse saudosa, guloseimas para a viagem e a roupa do corpo. quando os ponteiros estavam quase à meia-noite, alguém desesperado gritava seu nome em frente do edifício em que morava. Ana aproximou-se da janela do sétimo andar e seu coração balançou. ali estava ele, todo molhado de chuva, a máscara se desfazendo junto às lágrimas de desespero. gritava alto seu nome e uma lista de impropérios, sendo a palavra covarde a que mais lhe tocava. Ana quis descer para conversar cara a cara, mas achou melhor não se colocar mais uma vez à prova. dessa vez não iria ceder. precisava tentar uma saída, antes de reincidir em atravessar seu pulso com outra lâmina afiada. queria se surpreender ainda com este mundo, com algo que pudesse acabar com sua fixação por Hu, que lhe asfixiava com sua mania de parceiro carente, de querer se completar por meio dela. Ana não queria ser metade de nada, sua busca era a de voltar a ser inteira. mas Hu era forte, magnético. parou de drama e ficou estático, com a cabeça levantada, hipnotizando-a com o olhar. então ela amassou o tecido da blusa próximo à garganta, segurando a raiva, e acenou um sim com a cabeça.

II
 
Andrômeda e Via Láctea, assim se denominam as duas comunidades localizadasaté onde se sabe,  em continentes diferentes no globo, possuem métodos questionáveis, à luz da inteligência ética, de sondar a alma de cada humano a fim de exercer sobre ele uma influência subliminar, rebaixando-o a títere sem alma ou elevando-o a divindade. os que não têm nenhum poder de questionamento interior são facilmente arrastados para o sonho de viver em Via Láctea. ali aproveitam, por tempo indeterminado, seus mais inconfessos desejos, sem que por isso sejam vítimas de qualquer punição. seus únicos tributos seriam exalar com frequência humores e emoções sem autocontrole, para que os sugadores possam se manter vivos e abastecidos em seus poderes de manipulação. os questionadores da vida, os sofredores obsessivos, os esquizofrênicos e os suicidas apostam em Andrômeda como última chance de dar a si mesmos, antes de abandonarem o mundo, uma oportunidade de mudança radical. desse lugar não se tem muitas notícias, a não ser a de que seus mentores escolhem a dedo o candidato, sondando-o com métodos que vasculham qualquer esconderijo em seu íntimo. ambas as comunidades operam secretamente e só vem à luz o que é para  facilitar suas arregimentações, mas Andrômeda é um mistério, já que ninguém escapou dali.

III

o temperamento de Hu se parecia muito pouco com o de Ana. ele já havia entrado e saído de tantas seitas e escolas de autoconhecimento que era figura conhecida nos evidentes rastros em que a Via Láctea podia operar oficialmente. na última vez que deixou de seguir um desses atalhos, desiludido e dizendo a si mesmo que não se meteria
 em outra fria, entrou em um boteco de esquina e ali viu Ana, em sua singular beleza, por quem se apaixonou à primeira vista. ficou surpreso com sua reação, então disfarçou. de outra mesa um pouco afastada, sorvendo calmamente seu destilado preferido, Hu olhava de soslaio para aquela figura miúda, aparentemente frágil, segurando à sua frente um copo meio cheio de água mineral. calculou, pelo conteúdo da garrafa, que ela acabara de chegar. então, começou a espaçar mais entre um gole e outro, para dar tempo de acalmar seu coração. tirou um livro da mochila e inclinou-se fingindo interesse na leitura. nem completou um parágrafo, levantou a cabeça e viu que ela já não estava mais ali, apenas um copo vazio e a garrafa pela metade. de rompante, agora sem nenhum constrangimento, olhou em todas as direções e nada. nesse intervalo, Ana havia conferido uma mensagem no celular, levantara-se de súbito e, sem ser notada, saíra apressada para a rua.

IV

na esquina próxima estava Antum, codinome do contato do partido, para lhe passar mais uma tarefa urgente. Ana pegou dele a bolsa e a colocou a tiracolo, sem perguntar sobre seu conteúdo. ambos trocaram um aperto de mão e se dirigiram rapidamente em direções opostas. apreensiva, com as mãos geladas, ela desceu a escadaria do metrô a passos rápidos. estava tão nervosa que não conseguia passar pela catraca, até se dar conta que estava entrando pela saída. como se sentia idiota em denunciar sua fragilidade ao tentar cumprir uma missão à qual jamais havia sido talhada, a não ser para provar a si mesma uma coragem que nunca tivera. lutava clandestinamente da mesma maneira que sobrevivia escondendo-se de si. aquilo já estava passando dos limites que podia suportar, pois esse medo começava a superar o pavor de enfrentar seus monstros internos. queria largar a encomenda em qualquer banco do vagão e abandonar aquela loucura. depois refletiu e se convenceu de que colocaria em jogo a vida de outras pessoas, mas jurou que esse seria o último episódio de sua missão. cinco estações à frente, desceu e logo avistou na plataforma o homem mais velho, com as características que foram passadas, a quem deveria entregar a encomenda. checaram as senhas, outro aperto de mão e Ana virou as costas. quanto menos soubesse, melhor seria para a segurança de ambos. só falhou na hora de seguir o combinado, que era voltar pelo mesmo trajeto. e foi nessa marcada que ela dançou.

V

não havia quase nada que não estivesse sob a vigilância sigilosa da polícia política e de seus agentes. para eles, tudo poderia ser controlado por meio de uma inteligência artificial com algoritmos de espionagem de última geração. quando necessário, faziam um grampo direto na fonte. prisão e tortura somente em último caso, já que o aparato funcionava de modo satisfatório quando o poder se travestia de democracia. acontece que algumas organizações, tendo estudado profundamente as articulações comuns praticadas sob a intervenção da Via Láctea, também utilizavam métodos de infiltração na polícia, para tentar se defender de possíveis ataques, disputando nesse cenário um complicado jogo não percebido pelos cidadãos comuns, em geral entorpecidos pela rede de controle subliminar das mídias cúmplices.

à parte, sustentado e dirigido por um sofisticado corpo de códigos secretos - independentemente da ideologia que estivesse no poder – estava o “partido”, que vinha atuando nos bastidores da história através dos séculos com uma prática herdada de antigos ensinamentos de Andrômeda. aleatório como um caleidoscópio associado a uma rigorosa combinação de gematria entre diversos sistemas abjad, a verdade se ocultava em mensagens aparentemente tolas - muitas vezes em  ilustrações que incluíam piadas ou frases de autoajuda atribuídas geralmente a falsos autores -, que eram passadas à luz do dia, aos destinatários certos, por qualquer aplicativo telefônico ou pela internet, sem levantarem suspeitas ou serem  decifradas por quem não tinha o domínio da técnica. 
uma vez ciente e adepta da missão para a qual fora recrutada e das regras básicas de como utilizar a decodificação que lhe competia, Ana ganhara a função de conexão entre duas pontas - ambas sempre com falsas identidades e que não se conheciam entre si. para isso, acessava as chaves que abriam apenas os códigos exatos àquela tarefa, exclusiva, que jamais se repetia. Ana era um elo que não sabia do antes nem do depois e sequer tinha ideia da extensão da corrente. funcionava como uma peça única que, caso se partisse, encerraria informações desconexas em si mesma. 


VI

Hu tomou o restante de sua bebida em um único gole, pagou a conta e foi apressadamente para a rua, olhando para todos os lados, mas não viu mais Ana. apalpou os bolsos do casaco e da mochila e lembrou que deixara o crachá em cima da mesa da sala. caminhou até seu apartamento, que ficava a poucos quarteirões dali, para pegá-lo, pois sem ele não entraria na corporação. fazia pouco tempo que tinha sido aprovado no concurso para o cargo de investigador, com a intervenção oculta do partido. ele era um dos infiltrados. da mesma maneira que qualquer outro membro, não conhecia a organização além do contato que lhe passava as instruções e que poderia ser acessado a qualquer momento com total segurança. no íntimo, quando aceitou fazer parte do esquema, fora atraído mais pela adrenalina, que ainda sustentava seus altos e baixos de humor adquiridos em outras práticas alienadas da Via Láctea do que pela nobre causa, mas depois se convenceu que fazia aquilo principalmente pelo dinheiro e pelo poder de aquisição material e status que queria manter. sua função basicamente era a de comunicar a tempo ao partido e evitar qualquer prisão de um de seus quadros que tivesse caído.

VII

atordoada pela súbita decisão de abandonar sua missão, Ana acabou se distraindo e desceu mais um andar da estação do metrô, em vez de atravessar para o outro lado da mesma plataforma e voltar até onde estaria Antum. nesse equívoco, a poucos passos da escada rolante, ela viu o homem a quem acabara de entregar a encomenda sendo conduzido pelo braço por dois policiais, um de cada lado. em choque, ela engoliu em seco e percebeu que ele a reconhecera e passara uma mensagem por meio de piscadas.
ainda trêmula, Ana caminhou pela plataforma olhando o chão até avistar, em um canto, a bolsa que ela havia entregue e que, por astúcia e total obediência às normas de conduta do partido, fora poupada de ser levada com o seu contato pelos policiais. agachou-se e a recuperou, fechando os olhos aliviada. subiu rapidamente as escadas e tomou o metrô, dessa vez para o trajeto correto, pensando sobre o que poderia significar todo aquele acaso que não era por acaso, que afinal os livrara, supunha, de uma enrascada maior.

VIII

em outro ponto previamente combinado, a poucos metros de onde o encontrara antes, o rosto de Antum, que a viu voltando com a encomenda, expressou um ar preocupado de interrogação. Ana devolveu-lhe a bolsa e contou o que tinha acontecido. imediatamente, ele pegou o celular e enviou uma mensagem, depois deu um sorriso largo e convidou-a para um café, dizendo que esperasse pelas instruções seguintes, pois dali mesmo ela deveria ir até aquele senhor que fora preso e libertá-lo.

àquela altura, já em pânico, Ana disse um não tão alto que o assustou. primeiro tentou lembrá-lo que pelas normas ela jamais poderia realizar outra tarefa vinda de um mesmo contato. depois argumentou que estava deixando, naquele instante, qualquer missão, pois não tinha mais condições psicológicas para prosseguir. Antum concordou sobre seu afastamento definitivo, mas, antes, lembrou-lhe de que se tratava da mesma tarefa e só ela poderia completá-la. seria mais arriscado envolver outra pessoa da célula.

sem muita margem para outros argumentos, e crendo que estaria livre após isso, ela concordou. logo ele recebeu a mensagem com as instruções do que ela deveria fazer. despedindo-se, Antum lhe deu a mesma bolsa para ser entregue de novo ao contato e, já prevendo sua pergunta, disse que dessa vez não haveria problema, eles não seriam molestados nem interrogados e teriam segurança garantida. 
quando o partido afirmou que funcionava, não estava blefando, ela deveria confiar. mesmo assim, Ana estava decidida que seria o último incidente no qual iria participar. 


IX


Hu se dirigira para outro posto de delegacia e estava preparado para intervir na libertação de um dos seus, mas vê-la novamente naquela situação tão inesperada o desconcertou. não é possível, pensou, todo aquele acaso não era por acaso! então ela também é uma das nossas? fazendo muito esforço para entender e conectar os pensamentos que lhe assaltavam a mente, por um momento supôs que tudo não passava de uma farsa, que fora uma armação do partido para colocá-los frente a frente, um encontro mais do que marcado. mas por que precisaria dessa volta imensa se o primeiro já havia acontecido naquele bar horas atrás? é muita loucura pensar que encaixariam outras múltiplas narrativas para que tudo parecesse natural. não, só um grande estrategista seria capaz de fazer ferver no caldeirão das probabilidades a fórmula exata para casar inúmeras incógnitas! isso não era obra do partido, com certeza. ou teriam mesmo tanto poder assim sobre os fatos e a vida das pessoas? 
alheia a tudo e sem demonstrar sinais de ansiedade, Ana assinou o alvará que estava sobre a mesa do agente e fez um sinal positivo para o senhor grisalho, inclinando sua cabeça para a saída. Hu estendeu-lhe a mão num gesto formal e, sorrateiramente, enquanto fingia apertá-la em sinal de despedida, olhando-a firmemente nos olhos, entregou-lhe um pequeno papel dobrado, enquanto dizia que já estavam liberados.


X


afastados daquele lugar que cheirava a terror e medo, de tantas histórias de presos políticos que não voltaram mais a ver a luz do sol, ela finalmente entregou a bolsa para aquele senhor grisalho de comportamento imperturbável e nunca mais o viu.
o ponto final nesse livro de suspense deu origem a outro enredo que a capturou sem prólogos e legendas, sem deixar a opção da leitura que tinha intenção de fazer sobre si mesma.
Ana soube, desde aquele instante em que suas mãos se tocaram, que ela poderia escapar das tarefas secretas do partido que acabara de abandonar, mas não a de ceder ao desejo de voltar a encontrar aquele homem que sonhava ser o último de sua vida. a lembrança daquele vigoroso e penetrante olhar era o seu novo desafio e então ligou para o número que ele havia escrito no bilhete - início de um amor cheio de disputas, de muita raiva e tesão. perdas e vitórias.
seu romance passional com Hu, repleto de palavras que nomeavam o mais profano e lascivo que poderia constar na literatura amorosa pornográfica, cabia em um minidicionário compacto de bolso. foram exatos 365 dias de uma convivência sem fôlego, até aquele fatídico dia, marcado com um X na folhinha da agenda, em que ele arrombara a porta do banheiro para salvá-la de si mesma, já desfalecida em água e sangue jorrado de seu pulso. acompanhou-a pelo tempo em que ficara hospitalizada, mas depois veio o fim. Ana, frustrada em seu desejo de se despedir da própria vida, deu adeus para ele e mudou-se para outra cidade, sem deixar rastro. passaram-se os meses e veio a pandemia.

XI

agora ele estava ali na rua, olhando para ela debruçada na janela do sétimo andar, testando mais uma vez sua vulnerabilidade e prestes a fazê-la abortar a última chance de iniciar outra jornada fora desse mundo de turbulências, sem apegos e falsas promessas de amor de sua última relação tóxica, enquanto ela repetia o sinal afirmativo de que desceria para encontrá-lo, pensando em quem teria passado seu paradeiro.

XII

ao vê-lo ali tão próximo, Ana se esforçou para não demonstrar suas saudades. em vez disso, perguntou com voz rouca e irada como ele havia descoberto seu endereço.

frágil e emocionado, Hu revelou naquele momento uma face que ela desconhecia. desculpando-se, baixou a guarda encobrindo aquela bravata de macho alfa enquanto minutos antes a ofendera aos gritos. devagar,  aproximou-se e a envolveu em um abraço terno, sem parar de chorar. depois retirou calmamente sua máscara e a beijou suave e demoradamente nos lábios.

por um tempo incontável, eles ficaram ali recebendo a chuva e trocando carícias de outro tipo, diferente do que se acostumaram como adictos daqueles hormônios sexuais de fazer perder a cabeça.

sem palavras, ela o conduziu até o apartamento, onde despiram as roupas encharcadas e se aqueceram com banho, cobertas e bebidas.


XIII

sentados de frente um para o outro, Hu iniciou a fala. primeiro, ele havia chegado ali por ordem do partido, que sempre soube de cada passo que ela deu, mesmo depois de ter abandonado a missão. segundo, que o partido era também o responsável por vetar seu desejo de imigrar, que ela confirmaria em breve pelo comunicado oficial que viria de Andrômeda recusando seu formulário de pesquisa. por fim, que eles não eram mais assunto de interesse do partido e estavam liberados de qualquer investigação.

muda e perplexa, Ana se esforçou alguns instantes para entender a extensão daquela vigilância sobre ela, relacionando as mensagens trazidas por HU com as evidências de que sua vida, ou o que julgava lhe pertencer, de fato nunca esteve em suas próprias mãos.

atento e em silêncio, a face de Hu apenas expressava sinais afirmativos aos insights que ela manifestava. depois, ambos foram repassando os episódios que se destacaram no tempo em que estiveram juntos, esmiuçando cada detalhe de suas tarefas, as coincidências que observaram desde o início em que foram contatados e o que poderia significar todo “aquele acaso que não era por acaso” do encontro, agora sabidamente, predeterminado entre eles.

as suspeitas que ambos se recusaram a enxergar no passado, como se fosse parte de um surto conspiratório, agora se confirmavam nesse desfecho. sim, havia um plano no qual o partido operava em um nível que não se tinha acesso e que os dois, por certo, nunca puderam interferir. talvez fosse um projeto de criação de scripts muito bem articulados para toda a humanidade, em que a pessoa encenasse um papel exclusivo crendo ser esse o seu natural no drama da vida. talvez tudo fizesse parte de uma agenda que deveria ser cumprida acima de qualquer interesse pessoal, cuja compreensão não era simplesmente ordinária.

e assim eles foram, nesse exercício de imaginação até o amanhecer.


XIV

Hu concluiu dizendo que deixaria o cargo de agente na polícia. “sinto muito, Ana, por não ter conseguido enxergá-la como é, fora de minhas... fora de minhas... projeções preconceituosas. eu ficarei aqui, se quiser. eu amo você.”

Ana pegou a mochila que levaria para Andrômeda, abriu e mostrou a Hu o que ela considerava como sua única bagagem dali em diante. agora, sua viagem era uma busca solitária. 

na despedida não houve promessas nem datas para qualquer reencontro. ambos intuíram que deveriam viver em sintonia com o seu próprio tempo.

mas por que o partido deixara todas as pistas para que Hu e Ana confirmassem muitas de suas suspeitas era uma pergunta sem resposta. quem sabe um dia virá a contestação de que o perigo inerente ao livre arbítrio é inversamente proporcional a se estar muito próximo da verdade.


virginia finzetto