domingo, 26 de janeiro de 2020

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

TÃO BREVE STAR

quando eu partir, penso que será nessa ocasião o dia de entregar o relatório. nada comparado a qualquer método até aqui por mim conhecido. imagino que será algo mágico, telepático, osmótico, instantâneo. agora, da maneira como eu poderia fazê-lo, seria mais demorado e poético. emociono-me de tal forma inexplicável com o fato de eu estar viva. não me recordo sequer quando foi dado este sim para a minha existência. mas uma das coisas que tenho pra mim é que não suporto isto, de verdade. não fui capacitada para aguentar tanta maldade com os seres orgânicos e inorgânicos desta esfera imensa, linda, misteriosa. não vim armada para não me identificar com tantas experiências de horror e holocausto. talvez do outro lado eu já soubesse do quanto os danos sofridos há milhares de ano por este sistema planetário prejudicaram a raça humana, mas eu não tinha ideia de que o meu equipamento pessoal não aguentaria o sofrimento a tal ponto de que, hoje, se eu fosse embora, teria no meu relato a marca da reprovação e também a estrela da misericórdia e um abraço. 

viirginia finzetto

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

ANA MNÉSIA

a memória vai se apagando. aí você percebe que o programa não roda mais no velho hd, e que alguns pontos do sistema não se recuperam, como o dia em que perdi o cabaço.

virginia finzetto

ESFÉRICA LUA


nem sextou 
e eu já tô cheia, 
desabafou a lua.

virginia finzetto

sábado, 21 de dezembro de 2019

SORRATEIRA

a personagem esgueira-se pelas entrelinhas, saltando de página em página, até subir pelos prefácios e cochichar na orelha do livro que será ali do alto. então pula de cabeça sobre as letras inertes do título. luta e dá a palavra que mudará seu destino.

virginia finzetto

sábado, 30 de novembro de 2019

CRÔNICA

VOCÊ, RECLUSO EM CASA, QUER VER COMO É A VIDA LÁ FORA?



precisava comprar zaatar. o único lugar onde vende o que gostamos é o empório Syrio, na Abdo Schahin... isso, a rua paralela à 25 de março. lá vou eu. tomo coragem, sem antes traçar um plano para percorrer o trajeto com objetividade, na intenção de perder o menor tempo possível. sábado, você pensa: "é moleza". não, não é. começando pelo metrô, baldeação e a linha azul sempre lotada. desço na estação São Bento e evito a Ladeira Porto Geral e qualquer atraso. ando então até a saída do Largo, que é mais perto do meu destino. um violeiro na porta toca dois acordes, para e diz ao microfone: "deu branco". sigo até a pequena rua, já interditada aos carros, que dá quase em frente a outra que me levará ao endereço certo. vejo pelo menos dois mendigos tão sujos dormindo no chão e penso que talvez eles nem se lembrem mais a qual raça pertencem. desvio dos camelôs haitianos, de qualquer distração e de todo tipo de freguês no empurra-empurra. ouço a mulher gritar bem alto: "isso não vai ficar assim, seu merda". a verdade é que está todo mundo com pressa e ninguém dá bola aos detalhes da vida. penso que não houve nenhuma vez em que fui ao centro sem sentir a ditadura que exalava naquele ano de 1969, lembranças da minha adolescência por aquela região. penso que a verdade e a democracia são como o relâmpago: "quem viu, viu". agarro firme na bolsa e ando apressada. entro no empório, compro o que preciso e mais algumas coisas e saio logo, antes de sucumbir ao apelos inevitáveis de outros consumos desnecessários. bom, tudo que desce, sobe. e essa parte é a mais difícil, até chegar de novo na mesma entrada da estação. entro numa fila de acesso ao embarque. ouço no alto-falante "cuidado com seus pertences. mantenham bolsas e mochilas firmes ao corpo". não está acontecendo nenhum roubo, até ali não vi nada, mas lembrei do ditado "quem avisa amigo é", de quando estava na cidade do México, no Zocalo, nas rádios que alertavam sobre como agir em caso de terremoto, e não vi nada disso acontecer. minha mente volta para aquele lugar abafado da estação e tento controlar minha síndrome do pânico, já que era inútil mudar de ideia. então sigo com a manada até o vagão e penso: "em que ponto chegamos que não é mais possível voltar?" 


virginia maria finzetto

terça-feira, 19 de novembro de 2019

VERDEJAR

quando nasci, eu só possuía recordações do inferno. cresci certa de que tudo havia sido feito de maneira que eu reconhecesse ali a chance de construir um novo céu. os fatos foram se entrelaçando com o tempo para formar outra tela, agora com minhas vigorosas pinceladas impressas com as cores de outro mundo. sob o efeito da tortura das memórias persistentes, das surras e das suras, um dia resolvi que no lugar das flores secas do vaso antigo da sala deveria vingar o verde de uma planta jiboia, para que suas folhas mostrassem o ciclo do apogeu e do declínio, a impermanência da vida e também da morte. e em todos os demais dias eu venho tentando lembrar de regá-la. 

virginia maria finzetto