sábado, 13 de junho de 2020

SINESTESIA

no balcão da cafeteria, todos os dias, ela ficava ali por horas. os baristas olhavam-na com a impaciência do "vai querer o quê, dona?", as baristas, mais simpáticas, do "já fez o seu pedido?" . ela dava sempre a mesma resposta: "nada". assim que a porta da entrada se abria, todos se entreolhavam em risinhos de deboches do "lá vem a louca". quando a fofoca ganhou os ouvidos da gerência, veio a resposta que "a moça sempre deixa dez pagos". nos dias em que sua ausência era notada, eles não eram os mesmos. tropeçavam entre si, sem assunto, servindo aos afobados que se apinhavam disputando o seu primeiro. semanas, meses, e nada. acabaram se esquecendo dela, que apreciava apenas o aroma do café. souberam que ela ficara satisfeita com a experiência e que agora frequentava os pontos de fabricação e torra, insistindo para que a deixassem tocar nos grãos e no pó. 

virginia finzetto

quinta-feira, 11 de junho de 2020

MAIS DO MESMO

Na sala, Nicinha tricotava quando, de um pulo, a gata fez a bola de lã rolar de sua mão até a porta da saída. Ali, sua filha se agachou para pegá-lo.
Enquanto enrolava o fio ao redor da meada, Alice lembrou do sonho de viver com o marido em outro país. Às vésperas de partirem, frustrados pela pandemia, sem casa e sem emprego, abortaram os planos e foram morar com sua mãe.

− Estou atrasada! – despediu-se, entregando-lhe o novelo.

Lá fora, após salvar vidas primeiro, o mundo atordoado e desperto do coma induzido tenta ressuscitar o velho modelo da economia.


A vacina que não virá tão cedo é mais uma questão para a ciência resolver.

Pela sobrevivência, muitos viram na crise a chance de quebrar paradigmas, de mudar de cidade e de vida.

Alice, não, foi tentar uma recolocação no escasso mercado de trabalho.

O futuro a assusta, mas é um alívio que o importante para ela estava preservado.

Aprendeu a aceitar imprevistos e a fracionar seus medos, vivendo um dia de cada vez.



virginia finzetto

domingo, 24 de maio de 2020

FRIDA É INSPIRAÇÃO

Lembrei deste ensaio que fiz durante as aulas de desenho, quando ainda estava em Atibaia. Me deu saudades de tudo, inclusive da visita à Casa Azul, em 1996.

Desenho inspirado em uma foto de Frida Kahlo (lápis HB6, lápis de cor Othello (uns exemplares que comprei na Espanha há 30 anos...rs) e colagem de flores de chitão), em 2014.



BOLA DE CRISTAL

clarividência é ver reprises
pular sobressaltos
viver de antecipações

virginia finzetto

MEDIDA PROFILÁTICA


quando veio a praga
conspiraram ser um negócio da china,
ainda um misterioso país distante
no imaginário do povo analógico,
esse que agora se priva de abastecer desejos
de quinquilharias trazidas de lá em contêineres
e vendidas em camelôs

de novo, vê-se a religião a se divorciar da ciência
e essa mesma gente, que também não acreditou
ter o homem pisado na lua, agora quer ganhar as ruas

pobres mortais, contaminados fundamentalistas
matam a si mesmos e aos seus com a ignorância,
mas de dentro de minhas células femininas
versos intuitivos só permitem a verdade
do resguardo em bastante companhia
e o vírus, sem chance, morre na praia
por não ter onde ancorar nesse mar de poesia

virginia finzetto

[in Antologia Digital Ser MulherArte, maio de 2020]

segunda-feira, 11 de maio de 2020

VÍRUS VIROU

um vírus do avesso no mundo 
deixou todos para dentro 
com a coroa de espinhos na cabeça 
e nada nas mãos

virginia finzetto

quinta-feira, 7 de maio de 2020

DO ANO SABÁTICO À QUARENTENA

resolvi que havia chegado a hora. nada de apenas um final de semana ou um mês. meu projeto foi pensado, articulado, um sonho que vinha sendo acalentado diariamente, planejado etapa por etapa, cronograma e recursos conquistados. queria um período largo para me dedicar a outras produções! eis que chega a primeira notícia da doença, que não ficaria localizada no país de origem, mas avançaria com rapidez para o leste e, passo a passo, para o oeste, aumentando o número de mortes, a princípio impessoal, o que não significa menos importante, depois de conhecidos distantes e personalidades públicas, até chegar nas américas, atingir meus compatriotas, vizinhos e, ontem, alguém muito próximo. não serei eu a dar a medida e o valor de cada vida nesse curso ceifador que se alastrou vertiginosamente pelo mundo. quando me dei conta do inevitável, não houve muito tempo de escolha, a não ser rever meus planos, cancelar o que era possível. impressionada com a relação entre o que eu quero e o tempo de resposta, revejo cada quadro desse curta para entender qual foi a falha em meu pedido. hoje aceito que não houve nenhuma, apenas que, como todos deveriam entender, as ações coletivas ao longo dos anos contaram com a massa crítica necessária para a realização dessa, digamos, mesmo inconsciente, súplica. todo profeta é sábio para não estipular datas e desperto o suficiente para descrever o desfecho com detalhes que impressionam a maioria que dorme. e um dia ele chega! concluí que ao meu ano sabático se sobrepôs um apelo mais forte, o de resposta em primeiro lugar ao planeta. durante o longo tempo em que as fronteiras foram sendo abertas, encurtando distâncias pelas redes virtuais e pelas redes físicas – terrestre, marítima e aérea – para comercializar quinquilharias e quimeras, o vírus estava sendo gestado nas sombras da ignorância de que seus atos um dia o dariam à luz. então veio o basta! fecha tudo! e, antes do meu particular, mais do que um desejo, uma ordem deste universo que sempre responde, todos fomos atendidos. eu quis apenas descansar para recarregar minhas forças, mas o efeito dessa onda gigante engoliu a minha vaga e a minha vez. nesse efeito bumerangue que me atingiu em cheio, troquei meu ano sabático por uma quarentena. fizemos por merecer! 

virginia finzetto