verão de 40 graus. o clima seco e o calor intenso estavam interferindo na possibilidade de uma escolha acertada. literalmente, de cabeça quente, teria sido melhor ter se refrescado, ingerido muito líquido e procurado um ambiente refrigerado, antes de tomar qualquer decisão. porém, a impaciência do velho andaluz a atormentou de tal maneira, que ela apontou a casinha de Bornos para ser sua vivenda por uns tempos. logo se viu assinando a papelada. em pouco tempo um coche a conduzira para seu novo endereço. toda sua vida agora se resumia a duas malas que conseguira trazer sem exceder o peso de bagagem da companhia aérea barata. era o que menos importava, o essencial ia na frente, ela, ao lado do condutor, pronunciando qualquer conversa fiada em espanhol enquanto sua alma se convencia de quantas vezes e inúmeras tentativas em vão tivera em adivinhar seu futuro planejado. chegamos! tudo era tão simpático. pelo menos, até ali, nenhuma novidade. das muitas casas que procurara no site, essa fora uma escolha acertada. com suas economias poderia bancar um aluguel pelo tempo estipulado. abriu o portão de ferro da entrada e logo todo seu desconforto foi amenizado pelo microclima fresco do pátio ajardinado. "bom dia!", ouviu de uma voz masculina com sotaque português. "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?"... como um tropicão no dedão do pé, ela voltou a cabeça para ele, da mesma maneira que se olha para uma pedra ou elevação na calçada querendo tirar satisfação ou culpá-la pela repentina interrupção do trajeto. "bom dia, senhor. o que disse?".
enquanto aquele senhor português permaneceu aguardando alguma reação positiva de Ana, ela voltou a repetir a pergunta sobre que tipo de avistamentos ele havia se referido. "pois, se não sabes, é bom que permaneças assim... tem um ótimo dia", respondeu se despedindo. mas que diabo de sujeito estranho, pensou, enquanto encostava o portão que dava acesso à calle. depositou sua bolsa na mureta que cercava o jardim e entrou na pequena casa. da mobília da sala se desprendeu um olor tão forte de velharia, que atacou imediatamente sua rinite alérgica. após espirrar várias vezes, fez uma rápida vistoria nos demais cômodos e abriu todas as portas e janelas para que o sol pudesse penetrar e arejar os vãos, que pareciam bocejar após despertarem de um sono centenário. ao mesmo tempo em que se ocupava com a tarefa, Ana acolhia flashs aleatórios de sua vida. como em um roteiro, ia fazendo ali anotações imaginárias, puxando setas dos detalhes relevantes, como se nessa revisão fosse possível alterar um filme rodado, editando-o e colorizando-o em uma versão atualizada.
deixou escorrer a água quente da torneira da pia da cozinha até que ela se tornasse tíbia, pois desconfiou que com aquele calor não esfriaria nunca. encheu os dois regadores e foi aguar os canteiros ressequidos e saudosos da molha de uma chuva adiada por meses. entrou, acomodou suas malas em um canto do quarto e abriu o velho guarda-roupas, que lhe soprou segredos ali trancafiados. quem teria sido o último a habitar aquela casa? sentiu uma pequena compaixão do móvel que bufava cheiros medievais enquanto ainda se prestava a servir a tantas incógnitas, viajantes, passageiros, itinerantes. seria apenas mais uma a lhe amolar com suas parcas roupas e poucos acessórios. não pretendia ficar ali por muito tempo. tratou de tirar o pó acumulado em suas frestas e borrifou nele um pouco de mauá, antes de guardar suas coisas. como seria possível alcançar o que fica além das estrelas se ainda queria matar sua curiosidade sobre toda a existência? a literatura era uma das vias que poderia usar. cada personagem representa uma das facetas do que mostramos ou escondemos de si e dos outros, como o deus que respira semeando e recolhendo o que quer. olhar para o além do que ela podia imaginar estava sendo adiado. havia tanto a lidar ao seu redor que não entendia como alguém se ocupa em divulgar avistamentos sem ter testemunhado. não, ela não perdia tempo com suposições.
bebeu vários goles de água da garrafa que abastecera a geladeira. todo o ambiente inundado com os raios de sol trouxera de volta a alegria. acomodou a mala maior deitada sobre a prateleira do guarda-roupas e, em seguida, antes de guardar a mala menor, retirou dela a pequena máquina de escrever portátil e colocou-a sobre a mesa da saleta, inserindo uma nova lauda em branco para testá-la e garantir que não havia nenhum dano provocado pelo chacoalhar dos deslocamentos durante a viagem. "a humanidade é a realização do eterno e cada indivíduo uma linha de um número incalculável do que ainda está por vir. será possível que os exemplares derradeiros não abriguem mais os primórdios dessa trama original?". ao registrar isso, refletiu que o esquecimento gradativo a que todos fomos submetidos ao longo dos milênios seria parte de um esgarçamento premeditado que não renunciou de deixar em cada ser um fiapo que fosse de recordação de sua origem. e essa pequena pista era a grande responsável pelo desejo nostálgico de voltar a se unir aos outros fios, na tentativa de refazer, em retrospectiva na memória, a construção do trajeto que levaria ao rico tecido inicialmente projetado. o sagrado havia se espalhado e ordenado que toda a forma de arte e de escrita deixasse um registro, uma pista e tudo o que pudesse levar a quem quisesse a fazer essa viagem de volta. o profano seguia lado a lado. ambos trabalhando no imenso bordado, recortando-o e colando-o, desfiando-o e tecendo-o, em maravilhas e horrores. não eram suposições. muito menos sua era a criação dessa meada.
viveu ali por dois meses e partiu no mesmo táxi que a trouxera, rumo a Ronda. das transgressões que somente seu ser permite-lhe ir além das crenças, Ana concluiu, finalmente, que ser livre como costumava se gabar nem mesmo era um ato de sua própria vontade. até aquele destino já estava traçado. ao fechar o portão da casa que a recebera pelo tempo exato de concluir uma parte do seu livro, foi novamente surpreendida pelo senhor do sotaque português: "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?". com um largo sorriso, Ana deu-lhe um abraço carinhoso de despedida: "sim, Antônio, agora sim... adeus meu amigo...". antes de entrar no coche, a última mirada ao pátio, que agora estava mais verdejante e cheio de vida do que quando chegara. partia já prevendo que sentiria falta dali, do pouco que acrescentara à vida do povoado, mas principalmente falta dele, o vizinho que todos consideravam maluco, personagem de sua próxima história.
enquanto aquele senhor português permaneceu aguardando alguma reação positiva de Ana, ela voltou a repetir a pergunta sobre que tipo de avistamentos ele havia se referido. "pois, se não sabes, é bom que permaneças assim... tem um ótimo dia", respondeu se despedindo. mas que diabo de sujeito estranho, pensou, enquanto encostava o portão que dava acesso à calle. depositou sua bolsa na mureta que cercava o jardim e entrou na pequena casa. da mobília da sala se desprendeu um olor tão forte de velharia, que atacou imediatamente sua rinite alérgica. após espirrar várias vezes, fez uma rápida vistoria nos demais cômodos e abriu todas as portas e janelas para que o sol pudesse penetrar e arejar os vãos, que pareciam bocejar após despertarem de um sono centenário. ao mesmo tempo em que se ocupava com a tarefa, Ana acolhia flashs aleatórios de sua vida. como em um roteiro, ia fazendo ali anotações imaginárias, puxando setas dos detalhes relevantes, como se nessa revisão fosse possível alterar um filme rodado, editando-o e colorizando-o em uma versão atualizada.
deixou escorrer a água quente da torneira da pia da cozinha até que ela se tornasse tíbia, pois desconfiou que com aquele calor não esfriaria nunca. encheu os dois regadores e foi aguar os canteiros ressequidos e saudosos da molha de uma chuva adiada por meses. entrou, acomodou suas malas em um canto do quarto e abriu o velho guarda-roupas, que lhe soprou segredos ali trancafiados. quem teria sido o último a habitar aquela casa? sentiu uma pequena compaixão do móvel que bufava cheiros medievais enquanto ainda se prestava a servir a tantas incógnitas, viajantes, passageiros, itinerantes. seria apenas mais uma a lhe amolar com suas parcas roupas e poucos acessórios. não pretendia ficar ali por muito tempo. tratou de tirar o pó acumulado em suas frestas e borrifou nele um pouco de mauá, antes de guardar suas coisas. como seria possível alcançar o que fica além das estrelas se ainda queria matar sua curiosidade sobre toda a existência? a literatura era uma das vias que poderia usar. cada personagem representa uma das facetas do que mostramos ou escondemos de si e dos outros, como o deus que respira semeando e recolhendo o que quer. olhar para o além do que ela podia imaginar estava sendo adiado. havia tanto a lidar ao seu redor que não entendia como alguém se ocupa em divulgar avistamentos sem ter testemunhado. não, ela não perdia tempo com suposições.
bebeu vários goles de água da garrafa que abastecera a geladeira. todo o ambiente inundado com os raios de sol trouxera de volta a alegria. acomodou a mala maior deitada sobre a prateleira do guarda-roupas e, em seguida, antes de guardar a mala menor, retirou dela a pequena máquina de escrever portátil e colocou-a sobre a mesa da saleta, inserindo uma nova lauda em branco para testá-la e garantir que não havia nenhum dano provocado pelo chacoalhar dos deslocamentos durante a viagem. "a humanidade é a realização do eterno e cada indivíduo uma linha de um número incalculável do que ainda está por vir. será possível que os exemplares derradeiros não abriguem mais os primórdios dessa trama original?". ao registrar isso, refletiu que o esquecimento gradativo a que todos fomos submetidos ao longo dos milênios seria parte de um esgarçamento premeditado que não renunciou de deixar em cada ser um fiapo que fosse de recordação de sua origem. e essa pequena pista era a grande responsável pelo desejo nostálgico de voltar a se unir aos outros fios, na tentativa de refazer, em retrospectiva na memória, a construção do trajeto que levaria ao rico tecido inicialmente projetado. o sagrado havia se espalhado e ordenado que toda a forma de arte e de escrita deixasse um registro, uma pista e tudo o que pudesse levar a quem quisesse a fazer essa viagem de volta. o profano seguia lado a lado. ambos trabalhando no imenso bordado, recortando-o e colando-o, desfiando-o e tecendo-o, em maravilhas e horrores. não eram suposições. muito menos sua era a criação dessa meada.
viveu ali por dois meses e partiu no mesmo táxi que a trouxera, rumo a Ronda. das transgressões que somente seu ser permite-lhe ir além das crenças, Ana concluiu, finalmente, que ser livre como costumava se gabar nem mesmo era um ato de sua própria vontade. até aquele destino já estava traçado. ao fechar o portão da casa que a recebera pelo tempo exato de concluir uma parte do seu livro, foi novamente surpreendida pelo senhor do sotaque português: "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?". com um largo sorriso, Ana deu-lhe um abraço carinhoso de despedida: "sim, Antônio, agora sim... adeus meu amigo...". antes de entrar no coche, a última mirada ao pátio, que agora estava mais verdejante e cheio de vida do que quando chegara. partia já prevendo que sentiria falta dali, do pouco que acrescentara à vida do povoado, mas principalmente falta dele, o vizinho que todos consideravam maluco, personagem de sua próxima história.
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