subiu a escadaria que dava acesso ao primeiro andar do pequeno hostal de Ronda. abriu a porta da habitação, um ambiente singelo. deixara um recado na portaria, para que não a importunassem até o dia seguinte. havia uma cama de solteiro simples, um criado mudo e um rádio sobre ele. o banheiro coletivo ficava ao final do corredor. foi até lá fazer sua higiene e voltou a se trancar no quarto. sentou-se na beira da cama, mas não estava confortável. precisava ficar ereta, então a cadeira de longo espaldar seria melhor. fechou os olhos para iniciar a meditação. em poucos segundos, devido à prática de anos, deixou que lhe chegassem as impressões. de alguma maneira aquele rádio tão próximo estava interferindo, porque não conseguia parar o Cantares na voz de Sabina. ligou o rádio e lá estava. "yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón"... impressionante o significado da palavra sintonizar. só confirmava, por já não sabia mais quantas vezes, o que voltava a experimentar.
olhou por um bom tempo a gota de tinta seca verde-clara escorrida na porta do armário daquele quarto antigo. pensou sobre todos os instantes em que as criações acontecem por atenção e pela falta dela, por cuidado e pela ausência dele. por escolhas, tanto o lixo quanto a arte ganham espaço na existência. pensou nos minutos anteriores em que cruzou com o casal de lésbicas que se beijava no corredor e uma delas chorava. pensou ser uma despedida de duas pessoas que se amavam e observou em si uma dor e uma indiferença, ângulos desse ego que se identifica, que julga, que é capaz de negar a si mesma uma vida plena de escolhas acertadas, que tateia no escuro e acumula arrependimentos. Ana olhou de novo a gota e preferiu que ela tivesse escorrido e não ficasse ali como uma mágoa cristalizada. será que a moça ficará bem?
pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra.
olhou por um bom tempo a gota de tinta seca verde-clara escorrida na porta do armário daquele quarto antigo. pensou sobre todos os instantes em que as criações acontecem por atenção e pela falta dela, por cuidado e pela ausência dele. por escolhas, tanto o lixo quanto a arte ganham espaço na existência. pensou nos minutos anteriores em que cruzou com o casal de lésbicas que se beijava no corredor e uma delas chorava. pensou ser uma despedida de duas pessoas que se amavam e observou em si uma dor e uma indiferença, ângulos desse ego que se identifica, que julga, que é capaz de negar a si mesma uma vida plena de escolhas acertadas, que tateia no escuro e acumula arrependimentos. Ana olhou de novo a gota e preferiu que ela tivesse escorrido e não ficasse ali como uma mágoa cristalizada. será que a moça ficará bem?
pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra.
virginia finzetto
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