terça-feira, 28 de julho de 2020

terça-feira, 21 de julho de 2020

MINHA HISTÓRIA CONTADA PELA ESCRITORA ROBERTA GASPAROTTO

Sabe aquele filme, comer, rezar e amar, em que a personagem tira um ano sabático só para si? Pois é, eu também fiz isso. O ano era o de 1.987, e eu juntei todos os meus recursos financeiros e fui com a cara e a coragem passar, e passear, um ano pela Europa. A ideia era ficar na casa de parentes e amigos, o que permitiria que eu permanecesse o maior tempo possível por lá. Minha primeira parada foi a Espanha, e, depois, fui para a Itália. Fiquei um tempo em Milão na casa de uma amiga, e de lá, partiria para Trento, onde tenho parentes. A única dúvida era se eu deveria passar primeiro em Veneza, que queria conhecer também, ou em Trento. Na hora de comprar o bilhete do trem, foi aquela confusão: como não sei falar italiano, eu e o caixa não nos entendemos de forma alguma. E ele, provavelmente já descolado e meio sem paciência com turistas, resolveu decidir por mim e me despachou para Trento. Lembro que a viagem foi longuíssima, parando em algumas cidades para trocar de trem, na maior correria. Uma dessas cidades em que passei, muito rapidamente, foi Verona, famosa por ser o cenário da peça Romeu e Julieta. Quando, finalmente, cheguei ao meu destino, já era quase noite e batia um vento gelado, típico do outono europeu. Parei em uma espécie de mercearia e, conforme o combinado, liguei para a sobrinha da minha avó, a fim de pegar as coordenadas para chegar à casa da minha família, que ficava em Selva di Levico, perto dali, mas um lugar não exatamente fácil de se chegar. Qual não foi minha surpresa, ao ver que a ligação não completava de jeito nenhum, e, quando completava, dava sinal de ocupado. Como naquela época não tínhamos as facilidades de hoje, como celular e internet, na hora me bateu um pânico, até porque não conhecia nada naquela cidadezinha, e, além disso, meu dinheiro já estava quase acabando. Quando dei por mim, estava no meio da rua, com bastante frio, uma mala pequena e uma mochila nas costas. Só sei lhe dizer que as lágrimas caíam do meu rosto, sem que eu conseguisse controlar. Nesse momento de desespero, eu lembrei de um conto sufi, que havia lido um pouco antes de iniciar minha viagem. O conto se chama Mushkil Gusha, que em árabe, significa 'o dissipador de todas as dificuldades'. A história diz que, aquele humilde de coração, que recorda Dele, e estiver com verdadeira necessidade, sempre irá encontrar o caminho. Esse conto pertence à tradição oral sufi, e é comemorado todas às quintas-feiras (e aquele dia era, exatamente, uma quinta-feira). Quase que imediatamente após eu pensar nessa história, apareceu um senhor, bem velho, e me perguntou por que eu estava chorando. Expliquei que estava perdida, pois não havia conseguido contatar uma parente minha e apesar de ter o endereço, não sabia como chegar na casa dela. Por sorte, o homem, apesar de não entender português, entendia o espanhol, e assim, conseguimos nos comunicar. Solícito, ele foi conversar com uns jovens do outro lado da rua, que, muito cordialmente, me ofereceram uma carona e me deixaram exatamente na casa dos meus familiares. Confesso que a pequena viagem de Trento até Selva di Levico teve um quê de aventura: eu, em um carro pra lá de velho, tendo por motorista um jovem no melhor estilo punk, escutando heavy metal. Ao chegar no local, fiquei certo tempo admirando a casa em que minha família italiana morava, toda de pedras, construída no século XIX. Fui muitíssimo bem recebida pelos meus parentes, e a cereja do bolo foi dormir na mesma cama que pertenceu ao meu bisavô... Um verdadeiro presente! Mas o que mais me intrigou nessa história toda, foi que, antes de entrar no carro, quis agradecer ao homem pela sua generosidade, e, simplesmente, não o vi mais. Até hoje penso, ou melhor, sinto, que aquele senhor foi a personificação do dissipador de dificuldades presente no conto sufi. Certos acontecimentos da vida me fazem crer que coincidências não existem. O que há, são sincronicidades. Como diz belamente a história: peça de coração humilde, e será atendido na medida de sua necessidade. E, realmente, eu vivenciei que assim é!
🇮🇹
Roberta Gasparotto, em: diga-me uma história e eu conto sua memória.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

INVISÍVEIS

Desde que cancelara sua viagem à Portugal, muito antes que o país aderisse ao isolamento social e tomasse todas as medidas profiláticas contra a peste, Ana intuiu que essa parada necessária poderia ser sua chance de terminar alguns deveres procrastinados.
A despensa completa, a faxina em dia, as contas no débito automático, trabalho entregue e nenhuma pendência urgente para resolver.
− Experimentarei na prática aquela vontade secreta de me isolar no Tibete.
Trancou a porta do apartamento e comparou as fronteiras que também se fechavam ao redor do planeta, devido à pandemia de insuficiência respiratória grave, à cena em que o fornecimento de ar era interrompido para o setor de Vênus Ville, onde vivia a escória mutante e escravizada da colônia marciana no Total Recall, um clássico do cinema.
Uma chave fecha a porta para trazer segurança, outra chave abre células que serão infectadas pela praga. “Será que sensores de presença na entrada poderiam evitar essas invasões?” Enfim, reclusa e solitária, Ana poderia elucubrar à vontade.
Nos dias que se seguiram, ela manteve a limpeza em ordem, fez escolhas simples do que preparar para o almoço, aproveitar as sobras do dia anterior e assim por diante, até chegar na triagem de roupas sem uso guardadas há muito tempo no armário e de outros descartes esquecidos pela casa.
Entre dúvidas existenciais e tarefas por finalizar, pensou que o sentido da palavra liberdade, por exemplo, vivenciada no claustro, em muito se parecia com a liberdade que vivia lá fora, nos dois casos carregados de um medo exacerbado e de restrições nas escolhas.

Fora, o medo do contágio; dentro, o medo de si mesma.

− Se eu insistir em repetir as mesmas defesas que sempre usei para me proteger, pode ser que elas não me sirvam quando este perigo acabar. Quem sabe, a Terra possa ser menos inóspita que o Marte retratado no filme.
No entanto, algumas coisas começaram a mudar na segunda semana. O que era uma corriqueira ida ao supermercado acabou se transformando em um estresse tão grande com os cuidados necessários para evitar o contato com a praga, que preferia pagar para outra pessoa fazer as compras. Uma maneira inclusive de colaborar com alguém em dificuldade financeira naquela situação de crise, dizia a si mesma como desculpa.
− Agora que me sobra mais tempo, não sei mais o que fazer com ele.
Então, sem os condicionamentos habituais, começaram a emergir as dores emocionais que a rotina tornava invisíveis e, com elas, os velhos temores de encarar suas crenças que, naquele momento, pareciam acusações: “Você tem medo do sucesso que poderia fazer o romance que não consegue terminar. Você tem medo de que seu talento não seja assim tão natural. Você tem medo de perceber que sem o Google seu vocabulário é parco, sua memória é curta, sua linguagem é pobre. Você tem medo de ser você!”.
Três semanas e o volume de mensagens repetitivas − de alertas, de autoajuda, de notícias falsas sobre tratamento milagrosos da doença, de profecias apocalípticas e de teorias da conspiração − foram se multiplicando e ganhando o mesmo tom pasteurizado. Todas invadindo sua caixa postal, as redes sociais e sua alma. Mal abria um vídeo, outros iguais ou semelhantes apareciam. Passou a deletar tudo e a manter-se afastada até dos noticiários da tevê.
Eram essas as portas que Ana necessitava urgentemente trancar, para perceber o quanto da virulência desse excesso de informação, não de sabedoria, havia contaminado a si mesma.
E agora que se passaram quatro semanas e ela já pesquisou e preparou várias receitas culinárias que encontrou na internet, completou com caneta Posca os poemas de Santa Teresa D’Ávila nas paredes do quarto e a pintura do dinossauro com cara de etê no corredor da entrada, resolveu brincar de advinhas:
“Quem é você, Ana Monfort?”
− Sabe aquela farsa do ‘estou envolvida com meu projeto pessoal’ que só vale até a página dois? Neste quadro de incertezas, eu sou aquela que gostaria de poder regressar o mais rápido possível ao cotidiano que me tornava, pelo menos eu acreditava, segura e notável. Não sei descrever estes pequenos lutos de um universo que vai se despedindo de mim tão rapidamente. Não dá tempo de acompanhar tantos enterros.
Enfim, dentro e fora, a catástrofe havia mandado muitos avisos prévios antes de se tornar realidade, mas ninguém nunca está preparado como deveria para enfrentar a finitude anunciada. Nem Ana.
“E que lugar o vírus ocupa nesta história?”
Ela não fazia a menor ideia, mas arriscou que era bem provável que esse pacote de energia invisível ficasse no passado junto com a parte da humanidade que ajudou a dizimar, varrido por alguma vacina e deletado do sistema por um programa de última geração que também formataria o mundo até aqui conhecido.
NÃO DESLIGUE OU DESCONECTE. INSTALANDO NOVAS ATUALIZAÇÕES EM SUA MÁQUINA.
Até o fechamento desta edição, e antes que o computador se desligasse automaticamente, nem Ana foi em busca do vírus, nem ele a encontrou; tampouco há notícias de previsões de datas, se ou quando a cura, dela e do mundo, será descoberta.

virginia finzetto

terça-feira, 7 de julho de 2020

BRASIL 171

o a que seguia o b 
que abrigava o c 
que estava dentro do d... 
a quadrilha das letras cursivas, 
todas presas umas às outras.

virginia finzetto

domingo, 28 de junho de 2020

TREM DE ALTA VELOCIDADE

viajar de trem pela sensação que lhe transmite de ser um contínuo sem volta, não importa em qual direção da máquina ou da posição em que se senta. foram mais de trinta anos para finalmente sentir que, naquele momento, o AVE ganhava a velocidade exata e que, pela primeira vez, podia experimentar a certeza de se acertar com ele no mesmo ritmo. acomodar-se e observar que os mesmos olhos que apreciam a paisagem também exploram as maravilhas em seu interior. o maquinista muda de tempos em tempos, assim como a combinação dos passageiros pelos vagões, que dificilmente se repete. o que permanece é o destino, embora cada um tenha uma percepção singular e distinta da mesma viagem. 

virginia finzetto

terça-feira, 16 de junho de 2020

A CONTATADA FOFOQUEIRA

antes mesmo que a pandemia saísse do universo das probabilidades para se materializar no planeta, ela recebeu em sonho a figura estranha de um ser que dizia ter vindo de fora do sistema solar para conversar sobre alguns recados que ela deveria ouvir com atenção e guardar segredo, antes que fosse autorizada a divulgá-los da melhor maneira que encontrasse, a partir do momento que ele a contatasse ao vivo. ficara tão impactada com o episódio, que não conseguira aguardar aquele momento para já começar a espalhar fosse lá o que fosse pelo mundo do mortais. dia a dia, pensava como seria essa sua nova função de mensageira quântica. durante anos aguardou a presença do enviado. mas, como ele não vinha, e completamente esquecida do pedido de se manter discreta, tratou de se fazer importante. quando surgiram as redes sociais, iniciou a dar um pitaco aqui, outro acolá, até ficar conhecida como alguém diferente a ser cultuada no mundo virtual. cheia de falsa importância, passou a acreditar que de fato tinha uma missão do além e já não podia mais escapar de divulgar qualquer recado. mesmo não tendo a menor convicção de manter seu compromisso com a verdade dos fatos, foi se enrolando e fofocando qualquer assunto que atraísse a atenção dos incautos. estes iludidos se divertiam e pediam cada vez mais por aquele tipo de bobagem diária. até que, dias antes de o mundo ser surpreendido por essa guerra subatômica, o ser do sonho se materializou em sua presença. totalmente amedrontada pela energia que ele emanava, teve um treco e caiu dura. naquele momento, tudo foi lhe transmitido telepaticamente de forma direta e objetiva e o recado final: você não tem vergonha na cara? 

virginia finzetto

domingo, 14 de junho de 2020

A ETERNIDADE DOS INSTANTES

— Quando foi inventado o tempo? 

A pergunta inocente de Ana caiu como luva para a costumeira algazarra em sala de aula. Foi o primeiro bullying coletivo que sofreu na vida. Todos os dias, era uma chacota que tentava esmagar um aluno mais tímido, até vê-lo como tomate pisado no chão, sangrando de vergonha. A dinâmica sempre partia de um núcleo de garotos maldosos e ia aglutinando a maioria da classe, que, por contágio e num crescente, ia às gargalhadas, enquanto a vítima se via diminuindo na carteira, desconcertada pela humilhação. 

Sem demonstrarem nenhum riso, as fiéis amigas Norma e Bel. A professora, exaltada, pediu ordem, mas não conseguiu interromper a baderna descontrolada. 

Enquanto isso, como defesa, Ana encontrara refúgio em suas lembranças do dia anterior, no qual o riso solto não era de deboche, mas de alegria de um domingo ensolarado de brincadeiras de rua. Vieram-lhe as imagens do sorteio de chiniqueiro livre para decidir quem iria bater a latinha. Depois, a escolha do perímetro até onde todos poderiam se esconder. Enquanto acontecia a contagem regressiva, todos dispararam em busca do melhor esconderijo. E, cada vez que o batedor conseguia encontrar uma boa parte dos escondidos, uma criança mais esperta corria na frente, chutava a latinha e salvava todo mundo. E o esconde-esconde ia longe.

Já começava anoitecer, quando a turma exausta se deitara na calçada para olhar o céu e as estrelas. E aí alguém notara a falta dela. Encontraram-na adormecida dentro de uma velha casinha de cachorro abandonada no quintal do vizinho. Ela havia batido o recorde de sumiço por dez horas! Essa aventura lhe trouxera a vitória e a o bônus de não ser a batedora por três rodadas.

Quando Ana voltou de seu devaneio, a sala já estava em silêncio. A única voz era a da professora, muito brava, que, sentindo-se desacatada, pedia uma pesquisa, valendo nota, sobre a pergunta que Ana fizera, motivo de tanta piada.

virginia finzetto

[in Coletânea de Prosa, Mulherio das Letras, 2017]