segunda-feira, 2 de abril de 2018

TEMPO

afago, dinheiro, informação... Ana seguia pensando em tudo o que poderiam lhe arrancar. algumas coisas, até sem muito esforço, acabaram indo embora por si, porque não tinham importância ou valor às quais ela quisesse se apegar. por ingenuidade, muitos assaltos e sobressaltos lhe aconteceram, no corpo e na alma. no entanto, ninguém lhe roubaria o tempo. desde muito cedo aprendera a controlá-lo. era criança quando indagou em público quem o teria inventado, pois o sentia armazenável, codificável, palpável como sentia o vento, a chuva ou qualquer outro fenômeno que podia apreciar com os sentidos. só depois descobrira que seu sentido não era visível aos olhos comuns e que seu tempo não fazia morada em qualquer vilarejo nem era identificável em algum radar.

virginia finzetto

sábado, 31 de março de 2018

ENCANTAMENTO

pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra. 

virginia finzetto

sexta-feira, 30 de março de 2018

RONDA

subiu a escadaria que dava acesso ao primeiro andar do pequeno hostal de Ronda. abriu a porta da habitação, um ambiente singelo. deixara um recado na portaria, para que não a importunassem até o dia seguinte. havia uma cama de solteiro simples, um criado mudo e um rádio sobre ele. o banheiro coletivo ficava ao final do corredor. foi até lá fazer sua higiene e voltou a se trancar no quarto. sentou-se na beira da cama, mas não estava confortável. precisava ficar ereta, então a cadeira de longo espaldar seria melhor. fechou os olhos para iniciar a meditação. em poucos segundos, devido à prática de anos, deixou que lhe chegassem as impressões. de alguma maneira aquele rádio tão próximo estava interferindo, porque não conseguia parar o Cantares na voz de Sabina. ligou o rádio e lá estava. "yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón"... impressionante o significado da palavra sintonizar. só confirmava, por já não sabia mais quantas vezes, o que voltava a experimentar. 

olhou por um bom tempo a gota de tinta seca verde-clara escorrida na porta do armário daquele quarto antigo. pensou sobre todos os instantes em que as criações acontecem por atenção e pela falta dela, por cuidado e pela ausência dele. por escolhas, tanto o lixo quanto a arte ganham espaço na existência. pensou nos minutos anteriores em que cruzou com o casal de lésbicas que se beijava no corredor e uma delas chorava. pensou ser uma despedida de duas pessoas que se amavam e observou em si uma dor e uma indiferença, ângulos desse ego que se identifica, que julga, que é capaz de negar a si mesma uma vida plena de escolhas acertadas, que tateia no escuro e acumula arrependimentos. Ana olhou de novo a gota e preferiu que ela tivesse escorrido e não ficasse ali como uma mágoa cristalizada. será que a moça ficará bem? 


pensava em não aceitar mais convites para encarnação. quantas vezes já teria vindo aqui? em quantas delas teria quebrado sua promessa de fazer já não lembra o quê? estava cansada de não saber como não revidar. anos de meditação e a vontade de enfiar a mão na cara do sujeito do alto-falante do parque de diversões, que tirava sua concentração, fez com que despertasse para algumas percepções de si mesma. crise. Ana estava em crise. sabia que nessas horas nenhuma filosofia poderia ser melhor do que a própria consciência de si mesma. catou a bolsa e saiu pelas calles, apreciando o pé de laranja-de-sevilha carregado de frutas a enfeitar a calçada. foi caminhando em direção ao canto da sereia. distração por distração, era melhor provar uns tapas e uma sangria. aceitou que seus pensamentos eram mais fortes, que seu ego era torpe, e que, sobretudo, a música era boa e a encantava, no melhor sentido da palavra. 

virginia finzetto

quinta-feira, 29 de março de 2018

BORNOS

verão de 40 graus. o clima seco e o calor intenso estavam interferindo na possibilidade de uma escolha acertada. literalmente, de cabeça quente, teria sido melhor ter se refrescado, ingerido muito líquido e procurado um ambiente refrigerado, antes de tomar qualquer decisão. porém, a impaciência do velho andaluz a atormentou de tal maneira, que ela apontou a casinha de Bornos para ser sua vivenda por uns tempos. logo se viu assinando a papelada. em pouco tempo um coche a conduzira para seu novo endereço. toda sua vida agora se resumia a duas malas que conseguira trazer sem exceder o peso de bagagem da companhia aérea barata. era o que menos importava, o essencial ia na frente, ela, ao lado do condutor, pronunciando qualquer conversa fiada em espanhol enquanto sua alma se convencia de quantas vezes e inúmeras tentativas em vão tivera em adivinhar seu futuro planejado. chegamos! tudo era tão simpático. pelo menos, até ali, nenhuma novidade. das muitas casas que procurara no site, essa fora uma escolha acertada. com suas economias poderia bancar um aluguel pelo tempo estipulado. abriu o portão de ferro da entrada e logo todo seu desconforto foi amenizado pelo microclima fresco do pátio ajardinado. "bom dia!", ouviu de uma voz masculina com sotaque português. "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?"... como um tropicão no dedão do pé, ela voltou a cabeça para ele, da mesma maneira que se olha para uma pedra ou elevação na calçada querendo tirar satisfação ou culpá-la pela repentina interrupção do trajeto. "bom dia, senhor. o que disse?".

enquanto aquele senhor português permaneceu 
aguardando alguma reação positiva de Ana, ela voltou a repetir a pergunta sobre que tipo de avistamentos ele havia se referido. "pois, se não sabes, é bom que permaneças assim... tem um ótimo dia", respondeu se despedindo. mas que diabo de sujeito estranho, pensou, enquanto encostava o portão que dava acesso à calle. depositou sua bolsa na mureta que cercava o jardim e entrou na pequena casa. da mobília da sala se desprendeu um olor tão forte de velharia, que atacou imediatamente sua rinite alérgica. após espirrar várias vezes, fez uma rápida vistoria nos demais cômodos e abriu todas as portas e janelas para que o sol pudesse penetrar e arejar os vãos, que pareciam bocejar após despertarem de um sono centenário. ao mesmo tempo em que se ocupava com a tarefa, Ana acolhia flashs aleatórios de sua vida. como em um roteiro, ia fazendo ali anotações imaginárias, puxando setas dos detalhes relevantes, como se nessa revisão fosse possível alterar um filme rodado, editando-o e colorizando-o em uma versão atualizada. 

deixou escorrer a água quente da torneira da pia da cozinha até que ela se tornasse tíbia, pois desconfiou que com aquele calor não esfriaria nunca. encheu os dois regadores e foi aguar os canteiros ressequidos e saudosos da molha de uma chuva adiada por meses. entrou, acomodou suas malas em um canto do quarto e abriu o velho guarda-roupas, que lhe soprou segredos ali trancafiados. quem teria sido o último a habitar aquela casa? sentiu uma pequena compaixão do móvel que bufava cheiros medievais enquanto ainda se prestava a servir a tantas incógnitas, viajantes, passageiros, itinerantes. seria apenas mais uma a lhe amolar com suas parcas roupas e poucos acessórios. não pretendia ficar ali por muito tempo. tratou de tirar o pó acumulado em suas frestas e borrifou nele um pouco de mauá, antes de guardar suas coisas. como seria possível alcançar o que fica além das estrelas se ainda queria matar sua curiosidade sobre toda a existência? a literatura era uma das vias que poderia usar. cada personagem representa uma das facetas do que mostramos ou escondemos de si e dos outros, como o deus que respira semeando e recolhendo o que quer. olhar para o além do que ela podia imaginar estava sendo adiado. havia tanto a lidar ao seu redor que não entendia como alguém se ocupa em divulgar avistamentos sem ter testemunhado. não, ela não perdia tempo com suposições.

bebeu vários goles de água da garrafa que abastecera a geladeira. todo o ambiente inundado com os raios de sol trouxera de volta a alegria. acomodou a mala maior deitada sobre a prateleira do guarda-roupas e, em seguida, antes de guardar a mala menor, retirou dela a pequena máquina de escrever portátil e colocou-a sobre a mesa da saleta, inserindo uma nova lauda em branco para testá-la e garantir que não havia nenhum dano provocado pelo chacoalhar dos deslocamentos durante a viagem. "a humanidade é a realização do eterno e cada indivíduo uma linha de um número incalculável do que ainda está por vir. será possível que os exemplares derradeiros não abriguem mais os primórdios dessa trama original?". ao registrar isso, refletiu que o esquecimento gradativo a que todos fomos submetidos ao longo dos milênios seria parte de um esgarçamento premeditado que não renunciou de deixar em cada ser um fiapo que fosse de recordação de sua origem. e essa pequena pista era a grande responsável pelo desejo nostálgico de voltar a se unir aos outros fios, na tentativa de refazer, em retrospectiva na memória, a construção do trajeto que levaria ao rico tecido inicialmente projetado. o sagrado havia se espalhado e ordenado que toda a forma de arte e de escrita deixasse um registro, uma pista e tudo o que pudesse levar a quem quisesse a fazer essa viagem de volta. o profano seguia lado a lado. ambos trabalhando no imenso bordado, recortando-o e colando-o, desfiando-o e tecendo-o, em maravilhas e horrores. não eram suposições. muito menos sua era a criação dessa meada. 



viveu ali por dois meses e partiu no mesmo táxi que a trouxera, rumo a Ronda. das transgressões que somente seu ser permite-lhe ir além das crenças, Ana concluiu, finalmente, que ser livre como costumava se gabar nem mesmo era um ato de sua própria vontade. até aquele destino já estava traçado. ao fechar o portão da casa que a recebera pelo tempo exato de concluir uma parte do seu livro, foi novamente surpreendida pelo senhor do sotaque português: "a senhorita já ficou sabendo dos últimos avistamentos?". com um largo sorriso, Ana deu-lhe um abraço carinhoso de despedida: "sim, Antônio, agora sim... adeus meu amigo...". antes de entrar no coche, a última mirada ao pátio, que agora estava mais verdejante e cheio de vida do que quando chegara. partia já prevendo que sentiria falta dali, do pouco que acrescentara à vida do povoado, mas principalmente falta dele, o vizinho que todos consideravam maluco, personagem de sua próxima história.  

virginia finzetto

MINARETE

suas lembranças viajavam à velocidade do Altaria visto do minarete da mesquita de Córdoba. suas lágrimas incontroláveis, agora, eram acalentadas pela mesma direção do trem, seguindo rumo ao seu destino, sem poder voltar atrás pelo mesmo trilho como algo que se possa manobrar com facilidade naquela aceleração. quantas recusas poderiam ter lhe poupado a tristeza, se tivesse entendido que todas elas jamais poderiam retornar ao ponto em que ainda não teriam sido proferidas, como probabilidades quânticas em que seu desejo pudesse alterá-las. desculpas ou justificativas, para que servem? nada mudaria o desferimento da sentença dada. fechou os olhos e se abraçou mentalmente. sentiu em si o peso de se ser o que se é. teria tempo, mais de cinco horas, para curar sua digestão. por um instante pensou se Juan padecera da mesma inquietação... 

virginia finzetto

terça-feira, 27 de março de 2018

TRAVESSIA

com a cabeça recostada, ela observava postes e casas a se deslocarem rapidamente pela janela. em algumas horas estaria em Algeciras, pernoitaria ali e pegaria logo cedo o primeiro ferry para Tânger. tudo planejado e pontual, como descrito no mapa que pegara no quiosque de turismo em Madrid. riu da memória de sua última vez em Asilah: teria ainda hoje o mesmo valor de um camelo? salivou ao lembrar das sardinhas fritas. mas nenhum dos retratos que tirou registrou o perfume da medina que impregnara seu coração, carregado de lembranças de Juan. talvez não tenha mais fim esta dor, pensou. 

virginia finzetto

domingo, 25 de março de 2018

CANDEEIRO

na parede de madeira da sala de chão batido, o pavio ressecado do candeeiro pendurado sinalizava o tempo de abandono ali sem uso por falta de fluido. de novo, acenderia a mesma grossa vela, que deixara em cima da mesinha de canto, já em toco, rodeada de seus endurecidos choros anteriores, e se sentaria ao lado, na velha cadeira de assento de palha. restaria pouco lume para lamentar a escuridão, mas o suficiente para ela terminar de ler a missiva de dez laudas, frente e verso, que recebera de Inácio. qualquer pessoa teria, apressadamente, à luz do dia, liquidado o assunto. menos ela, que nunca deixara de ouvir os causos dele com a mesma atenção que lhe dedicara sua vida inteira. capaz de prever em suas linhas quando um segredo estava prestes a se revelar, ela mansamente dobrava a carta e afagava-a contra o peito, depois guardava-a para o dia seguinte, como quem tapa provisoriamente a fissura de uma represa para evitar o desperdício do precioso líquido, adiando o final do prazer que aquela leitura lhe proporcionava... 

virginia finzetto