terça-feira, 5 de abril de 2016

CONTA-GOTAS

quantos lutos eu adiei? essa foi a pergunta que eu fiz quando consultei a cartomante, tão acostumada com outros assuntos. ela embaralhou e deixou as cartas de lado. depois seus olhos doces pousaram sobre os meus. uma alma tão antiga, quiçá de muitas vidas, naquele momento travestida de senhora conselheira. calada, derramei minhas lágrimas, uma a uma, que escorriam como um colar de contas. e eu perdi a conta de quantas se foram aos pares. quando me dei conta, ela me conta que o número passara da conta, e que eu não contasse mais, pois por isso ninguém me levaria em conta. paguei a conta e fiz de conta que deixei tudo pra trás.
virginia finzetto

domingo, 3 de abril de 2016

DOS NÚMEROS


DEMOCRACIA

nasce e acha que há um mundo neutro pela frente. descobre que o nome disso é esperança. cresce vendo os pais lutarem pela sobrevivência, enquanto passam muita necessidade. descobre que o nome disso é meritocracia. aprende o ensino da escola regular regida por parâmetros sem alma. descobre que o nome disso é educação. pratica a mais pura rebeldia que brota de seu coração. descobre que o nome disso é desajuste social. cai no vício de todo tipo de droga lícita e ilícita. descobre que o nome disso é contravenção. panfleta o mundo com questionamentos sobre todas as desigualdades. descobre que o nome disso é poder, de autoria patenteada. apanha por conquistar direitos que diminuam as diferenças sociais em defesa das minorias. descobre que o nome disso é a violência da polícia mandada. perde a esperança e ganha consciência. descobre que o nome disso é democracia. 

virginia finzetto

sexta-feira, 1 de abril de 2016

GALÁCTICO


PRIMEIRO DE ABRIL

às vezes eu acordo e me vem aquele momento de total êxtase por ter descoberto a fórmula da felicidade. e segundos depois, tudo me escapa, e os números e as letras iniciais começam a mudar de forma e a ganhar outra configuração e, quando eu me dou conta, a magia me fugiu e restou um murmúrio, um franzir do cenho, seguido de inúmeras ginásticas faciais para acompanhar a torrente elétrica do pensamento tentando capturar a explicação para o nada óbvio. voltas e voltas das ideias com o objetivo de escapar ao medíocre, do absolutamente confuso e irracional desejo de apreensão do sagrado, da mais pura e inocente aproximação do núcleo... do... do... do... tsc... e o resto do dia fica assim, totalmente profano. sigo comendo paçoquinha e esperando aquele convite que não chega.

virginia finzetto

domingo, 27 de março de 2016

CURA

eu era pequena, menos de 1 metro e menos de 7 anos. cabelo liso e curto. conversava com as plantas. vivia na rua de terra, brincando com os moleques. pernas e braços machucados dos tombos da bicicleta emprestada. e um dia eu amassei as míni flores da planta rasteira e daninha que brotava na calçada e coloquei o caldo na impinge do joelho. e sei que proferi algumas palavras, e aquilo curou. e me lembro que minha avó curou as outras coceiras apenas com amor e gestos delicados de vai e vem sobre as feridas usando uma folhinha de oliveira do quintal embebida em azeite. e hoje eu gostaria de resgatar essa inocência para curar todos os homens que querem tudo apenas por não terem nada a dar além do medo. e aproveitar e proferir uma meia dúzia de palavrões mágicos para exorcizar toda essa sujeira. 

virginia finzetto

sábado, 19 de março de 2016

HUMILDADE


O SILÊNCIO DOS ANJOS

ele ou ela era assim. pairava. até a definição do gênero era difícil, porque queria ser neutro em tudo. desde pequeno na escola deixava de comer na cantina, porque fatalmente deveria pronunciar um nome e isso já era uma escolha. e ele ou ela não conseguia, estava além de seus princípios, julgava-se acima disso. síndrome de anjo, que difícil. deveria servir a quem? aos homens? mas e esse corpo? e essa alma? e esses desejos loucos? eu sou humano, ó dó! só haveria um jeito de resolver isso: morrer, já que havia nascido. nascido aqui, onde cada passo é uma escolha, um lado, um compromisso. 

virginia finzetto

quarta-feira, 16 de março de 2016

BIOGRAFIA


ÍNTIM[AÇÃO]

havia tanto assunto ainda para falar. mas ela preferiu se sentar na varanda e deixá-lo ir. a poeira da estrada levantada pelos pneus da van que partiu apressada chegou e se misturou às suas lágrimas -- rompantes do engasgo da frustração que lhe subiu aos olhos -- agora vertendo avermelhadas. não foi fácil deixá-lo ir. não era o que ela queria. leve de menos, desproporcional demais, torto o bastante. queria encrenca. essa felicidade morna dos dias decorados de cor e salteado nunca estivera em seus planos. quando ela viu, após algumas horas, a poeira de novo aumentando e o vulto se aproximando, ainda pensou em uma chance, mínima. mas ele voltou, esticou a mão e ela assinou, dessa vez sem reclamar. afinal, a pena, o papel, o tranco e o trabuco convencem qualquer mulher a abandonar uma ilusãozinha besta. 

virginia finzetto

DEUS E O DIABO ÀS GARGALHADAS


quarta-feira, 9 de março de 2016

CRENÇAS

hoje o armário não quis fechar de jeito nenhum. a mínima dose de coragem deixou uma fresta aberta e por ali vi o lote de crenças penduradas. encarei parte delas, as mais usadas que, de tão usadas, viraram hábitos [e aí eu entendi o provérbio 'o hábito faz o monge']. vi todas acompanhadas de açoites e vendas, grandes formas usadas pelo capitão do mato para destronar o rei. peguei uma delas, tirei-a do cabide e a deixei sobre a mesa. como eu pude acreditar por tanto tempo a ponto de achar que bastava não usá-la mais para eu me livrar de seu assédio? deixei que ela voltasse para o armário, já destituída de seu domínio, para, assim, contaminar o lote inteiro por meio de vasos comunicantes. 

virginia finzetto

terça-feira, 8 de março de 2016

BINAH - HOCKMAH

sua vaidade exposta era fruto lascivo de uma paixão recolhida. mendicava alta tensão em toda rede com o intuito de se abastecer, mas provava somente de energia artificial. era mais sugada do que previa. de súbito, deu-se conta da beleza que dispensa trampolim. fez o mergulho que a levou às alturas, lugar onde fica a fonte luminosa de raios que não servem para acender fogo. raios frios que derretem a espessa camada de gelo sem queimar. e todo o processo se realizou a contento, provando ser próprio das mulheres a sabedoria e o entendimento. 

virginia finzetto

segunda-feira, 7 de março de 2016

FÊNIX

estranho seria se não houvesse a própria morte para os que estão no topo da cadeia alimentar. até estes serão comidos, mesmo que tardiamente, pelos vermes ou urubus no cumprimento de suas não condecoradas, porém honradas, tarefas de saneadores básicos da natureza. mas não a mitológica ave fênix, que se auto crema e ressuscita de suas cinzas, pois a ela coube a sentença de nunca perecer para sempre, engatando um no outro longos períodos de vida. ou seremos mortos ou seremos ressuscitados ou ambos em diferentes planos de realidade. mas não ter ninguém para me comer exatamente agora é o fim da picada. 

virginia finzetto

domingo, 6 de março de 2016

SINTONIA

abaixou os olhos, mas continuou a ouvir cada letra atravessando o túnel auditivo com pisos firmes e ritmados até que, ao final do pavilhão, se unissem para formar a palavra que fazia sentido. compreendeu uma a uma das palavras em separado. depois a ordem de cada palavra na frase. e, por fim, enquanto uma lágrima quente escorria até a metade de sua face, abraçou a mensagem de viver a dor do outro como se fosse sua.

virginia finzetto 

quinta-feira, 3 de março de 2016

HIROITO DE MORAES JOANIDES

Eu conheci Hiroito de Moraes Joanides (*Morretes 1936 +São Paulo1992) nos finais dos anos 1970, em nosso circuito da madrugada pelos bares e cinemas, entre o Belas Artes, Riviera e o Ponto Chic do Largo Paissandu, todo final de semana, para vender de mão em mão o tabloide de esquerda Movimento. O Rei da Boca do Lixo, como era conhecido, sempre aparecia com sua malinha cheia de livros, o Boca do Lixo, título de sua autoria, que viraria depois o filme "Boca”, do cineasta Flávio Frederico, em 2010. Veio-me hoje a imagem dele, baixinho, simples, com aqueles óculos com lentes de fundo de garrafa, ex-bandido e simpatizante da nossa tchurma de estudantes revolucionários. Bons tempos em que a gente só tinha medo da repressão. 

virginia finzetto

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

DECOR

Então era ditadura braba, e eu ainda uma criança. Havia um autoritarismo ferrado, do hino nacional, à entrada da escola, à rigidez da maioria dos mestres em sala de aula. E um professor de Português, desgraçado, que seguiu tudo ao pé da letra, queria que eu decorasse um poema imenso e difícil. E era para eu declamar para os colegas, valendo nota. Travei. Travei para sempre. Nunca mais consegui decorar nada, nem textos nem fórmulas nem datas nem sequer o que eu escrevi durante toda minha vida. Passei a odiar o tal homem, a odiar o tal poema, a odiar o tal poeta. Hoje, por acaso, estou aqui com I-Juca Pirama na minha frente, num esforço grande para chegar até o fim das estrofes bem construídas. Talvez assim eu possa me curar e fazer as pazes com o Gonçalves, esse grande escritor jornalista maranhense folclorista indianista romântico nacionalista [e que veio me confessar, ao pé do ouvido, que odiou o que aquele carrasco fez comigo]. 

virginia finzetto

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O ROMANCE DE DEUS

dizer que este mundo é um ovo é uma redundância. nunca achei mesmo que fosse uma esfera com todos os raios, que o partam de onde partam, ó raios, todos certinhos e idênticos conectando a periferia ao centro. mas é que esse ovo é de lagartixa, ou até menor do que imaginamos. as conexões entre fatos e pessoas formando essa trama me diz que o acaso é outro nome de um romance já escrito por deus ou é tanta coincidência do diabo que até deus se surpreende. eu poderia estar aqui me sentindo usada pelo satã, mas prefiro acreditar que o caso foi do acaso, e que este, por sua vez, já é obra de uma das tremendas coincidências criadas por deus. 

virginia finzetto

DOSES E DOSES

eu acredito na homeopatia, não porque sou crente, mas porque vejo resultados em mim na maneira como ela cura algumas doenças do corpo, da alma e do espírito, não necessariamente nessa ordem. porém, na área dos relacionamentos, as verdades que nos chegam em pequenas doses, de cicuta e de veneno de cobra, provocam efeitos colaterais dolorosos em meus corpos, e, em alguns casos, definitivos, como a quebra de confiança. está certo que a luz da verdade absoluta pode nos cegar, é preciso ir com cuidado no percurso do caminho espiritual. mas confundir isso com a ordinariedade mundana, dúbia por natureza, a perplexidade se traduz na minha cara de pamonha. desilusão é boa, mas eu detesto quando dizem que minha avó subiu no telhado. me mate de dor de uma vez, porque o sofrimento é intenso, mas tem seu mérito pela magnitude. nesse caso, quero alopatia na veia. 

virginia finzetto

sábado, 27 de fevereiro de 2016

ESPIANDO A ALMA ALHEIA


Parecia ser um jantar informal. Uma conversa entre um homem e uma mulher. Fiquei observando, enquanto bebericava aguardando meu pedido, como ele a triturava com os olhos, enquanto suas mãos dobravam lentamente a toalha de papel fazendo um movimento de fole de sanfona em direção a ela. De onde eu estava não era possível ouvir a conversa. Como se eu estivesse vendo um filme de cinema mudo, comecei a legendar mentalmente a cena: [ela] tá bom, você quer ouvir mesmo a verdade? [ele] sim, foi pra isso que viemos aqui conversar. [ela] eu não transei com ele (silêncio profundo) ok, transei... mas não foi bom... (pausa rápida) tá, eu transei sim e foi ótimo! [ele] sua (primeira dobra) filha (segunda dobra) de (terceira dobra) uma (quarta dobra) grandessíssima (quinta dobra) ... (sexta dobra)... FIM (sétima dobra). Despertei com a voz do garçom perguntando "posso servi-la?", enquanto flagrava o tal casal unir as mãos sobre a mesa e tascar um longo beijo. Tsc, já não se faz mais realidade como antigamente, pensei. 

virginia finzetto

sábado, 20 de fevereiro de 2016

FINITUDE

não me dói tanto pensar que sou um nada diante do imenso universo de galáxias inofensivas. o que não consegue se aquietar no quadrilátero superior do meu tórax, mais precisamente no quadrante esquerdo, é essa insignificância de uma vida diante da impunidade do mal praticado pelo homem, que meus olhos se acostumaram a ver. se é maior o índice de suicídio nos países do primeiro mundo, onde os valores de consciência são mais elevados que a busca do lucro fácil, talvez eu preferisse viver lá, porque entre todos os "ídios", de homicídios a genocídios, que nesta encarnação minha alma encara penalizada, quem sabe tirar minha própria vida não fosse uma opção desonesta, a ter que me sujeitar a uma sina que não é de minha escolha; a sina da impotência frente à crueldade que só os sensíveis podem avaliar como a mais dolorosa desta finitude de vida. 

virginia finzetto

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

LEMBRANÇAS

Não era o relógio que media o tempo. Era a distância do olhar sobre aquele tapete esgarçado. Do alto da escadaria, ela identificava ilhas intactas de cores em esmirna e preenchia com a imaginação o desgastado dos espaços vazios da entretela. Com o passar dos anos, a acuidade visual não era a mesma. De perto, ninguém conseguia enxergar o propósito do desenho inicial, como se não tivesse qualquer conexão entre os esparsos blocos de lã tecida da tapeçaria. Apenas para ela havia ali um permanente retrato e uma história eterna.  

virginia finzetto




sábado, 30 de janeiro de 2016

NÁUFRAGA DA REDE

Acordei na praia de uma ilha completamente deserta. Náufraga. Tudo acontece rapidamente. Avisto uma garrafa boiando em minha direção. Encalha na areia. Do gargalo enorme sai um celular. Há sinal, gps e crédito vitalício. Chamo seu número. "Cheguei...". Nenhuma resposta. Entro no Face, que fica a toda hora lembrando datas, enquanto meus cabelos me cobrem, minha roupa se desgasta, minhas unhas crescem, e eu mato a fome com algas. 

virginia finzetto



DESPEDIDA

As finalizações eram difíceis para ela. Talvez porque a linha e a agulha, que durante o trajeto abriram e preencheram tantos obstáculos, agora nesse ponto, quase final, nessa especial proximidade espacial, já não quisessem mais ser duas. E não havia distância para um passo nem um acabamento. Seria um corte fatal. Ambas separadas e o nó só na garganta. 

 virginia finzetto


domingo, 24 de janeiro de 2016

ACABOU

E se você entendeu mesmo, e não apenas ouviu, é momento do silêncio. Porque a disputa é para quem adia. E se, pelo contrário, o dia anoitece, é para que venha o manto da proteção, para que não se desvie mais com as distrações da protelação. Ora, pois a hora é de acolher sem julgar. Toda resposta chega, se há pureza nas intenções. 

virginia finzetto


terça-feira, 12 de janeiro de 2016

VIAJAR NA VIAGEM

Eu adoro viajar de trem. Infelizmente, como no Brasil JK fez o favor de não dar valor ao desenvolvimento desse meio de transporte, então a gente se delicia quando pode ir à Europa. Hoje, no meu mundo ideal, eu entraria sozinha em um deles, os de alta velocidade, e iria seguindo até resolver parar em alguma cidade, depois pegaria outro e assim por diante, até ficar satisfeita (não digo enjoada, porque eu não me enjoo). Não tem coisa melhor, digo, um ambiente tão propício, para fazer uma viagem dentro de outra viagem. 

virginia finzetto


A REALIDADE DO REBELDE

momentum filosóficum (dá pano pra manga): em nossa História, desde que o homem (homem e mulher) perdeu sua conexão com o simbólico, com o divino, passou a seguir um "ídolo moral" e suas regras, que sempre servem aos interesses de um grupo que está no poder, mas que, dependendo do sistema político, pode ser interpretado segundo os interesses individuais dessa sociedade (e cada vez em menores grupos, até o andar caótico do desejo individual e sua gana só pelos direitos, sem reconhecer deveres). só os rebeldes seguem e amam quando reconhecem seu único Senhor em si mesmo. mas isso é de um rigor que não se compara a qualquer restrição imposta ou moralidade, mas de uma presença Real neste mundo. 

virginia finzetto


sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

UM PARTO

é preciso que este veneno todo circule em minhas entranhas. quando for expelido será apenas vacina, para aplacar a fúria de um mundo que vacila entre fazer fofocas e praticar covardias. e como está difícil contê-lo, sem sair por aí, arrebentando a cara do primeiro que me contraria. e se cada um tivesse esse laboratório autorregulador da estupidez, poderíamos conter nossas vergonhas, em vez de aumentar o cordão dos insensatos. toda ingratidão é gerada no seio das falsas interpretações. quando a hermenêutica torna-se inefável. 

virginia finzetto